23.6.09


fusion & african jazz

Terroristas

Terroristas. O fogo, a dinamite, a pólvora, o punhal e mesmo o revólver fazem parte de determinados métodos. Certamente não fazem parte do rol dos métodos científicos, e falaremos disso a seguir. Entre os métodos anárquicos, porém, vejamos o caso de algumas pesquisas: na primavera de 1877, um bando armado conhecido como bando armado do Matese, composto por nomes de história entre as anarquias – como Carlo Cafiero e Errico Malatesta – e também por outros nomes cuja memória não foi guardada com tanto cuidado, pois o bando armado do Matese toma de assalto cidades do interior da Itália e sistematicamente queima tanto seus arquivos municipais quanto seus registros de impostos e demais documentos da intendência; além disso, o bando toma e redistribui ao povo tanto os fuzis da guarda municipal imediatamente destituída quanto os machados que haviam sido confiscados aos camponeses pela administração da cidade quando de uma medida pretensamente ecológica. O pouco dinheiro que é achado na caixa do cobrador de impostos também é distribuído ao povo. Enquanto queimam retratos do rei Vittorio Emanuele II publicamente, falam ao povo sobre as anarquias e são veementemente aplaudidos com alegria[i]. Era um dos prelúdios. À época, vários acontecimentos como esse vieram marcar a emergência de uma nova forma de ação direta como método anárquico.

Durante o ano de 1878, quatro atentados contra quatro diferentes Coroas foram registrados: um operário denominado Hoedel, e depois o Dr. Nobiling, eles atiram contra o Imperador alemão; algumas semanas depois, um outro operário denominado Oliva Moncasi, esse espanhol, ele dispara um tiro contra o Rei da Espanha; também o cozinheiro denominado Passamante tenta apunhalar o Rei da Itália. Em 1881, Alexandre II, czar russo, é executado durante uma parada pública. “Lançaram uma bomba sob a carruagem blindada, para detê-la. Alguns circassianos da escolta foram feridos. Ryssakov, que lançara a bomba, foi preso em flagrante. [...] O czar fez questão de descer. [...] Aproximou-se de Ryssakov e perguntou-lhe qualquer coisa, e quando passou perto de um rapaz chamado Grinevetsky, o qual tinha uma bomba na mão, este atirou a bomba de forma que explodisse entre o czar e ele próprio, para morrerem juntos. [...] Alexandre ficou estendido na neve, abandonado de toda a escolta.”[ii]

Mais pesquisas: no dia 13 de novembro de 1892, em Paris, Léon Jules Léauthier atenta contra a vida do ministro da Sérvia Georgevitch. É condenado à prisão perpétua e, no ano de 1894, é assassinado na prisão de Iles de Salut durante uma rebelião. Na tarde de 9 de dezembro de 1893, Auguste Vaillant lança uma bomba caseira cuja matéria-prima foi uma marmita, um punhado de pregos e outro de pólvora. Lançou a bomba nas dependências do Hôtel-Dieu, em Paris. Não deixou mortos, mesmo que tenha deixado muitos feridos. Foi condenado à morte pela guilhotina. Émile Henry, em 1893, promove duas explosões a bomba em Paris: a primeira na Rue des Bons-Enfants e a segunda no Café Terminus. Nos anais do seu julgamento, resgatados pelo historiador Jean Maitron, não demonstra qualquer tipo de arrependimento pelas mortes que causou; considera que seus atos estão tão sujos de sangue quanto a própria toga do juiz. Diferente de Vaillant, não colocou pregos dentro das marmitas que lhe serviram de matéria prima para as bombas caseiras: no atentado do Café Terminus, por exemplo, o rastilho detonava uma marmita na qual Henry colocara 120 balas de calibre. Deixou claro que não queria somente machucar[iii]. Na noite de 24 de junho de 1894, Sante Geronimo Caserio, depois de completar os últimos 27 quilômetros da viagem entre Sète e Lyon a pé por falta de fundos, mistura-se à multidão que acompanha a visita do presidente francês Sadi Carnot à Exposição Universal Lyonese. Em momento oportuno, abre espaço entre a multidão e afunda 11 centímetros da lâmina de seu punhal na direção do fígado do presidente. Sadi Carnot, que havia negado o indulto a Auguste Vaillant naquele mesmo ano, morre 3 horas depois. A Sra. Carnot, no dia seguinte, recebe uma carta com a fotografia do anárquico Ravachol, também condenado à morte após suas ações radicais, e um bilhete onde se lia: devidamente vingado. Na noite de 29 de agosto de 1900, Gaetano Bresci assassina em Milão o Rei Humberto I: foram três disparos certeiros no coração. Em 6 de setembro de 1901, Leon Czolgosz dispara contra o presidente americano William McKinley durante um comício em Búfalo. McKinley falece alguns dias depois.

Propagar pelo fato, inclusive pelo crime.

Malditos terroristas.

Os anárquicos desde muito eram perseguidos, presos e mesmo assassinados pela coligação e o exercício orquestrado dos interesses da burguesia ascendente e das instituições de Estado em toda a Europa. A madre Igreja normalmente esteve envolvida ou quieta, e certamente tinha seus interesses também. Após os ecos da Comuna de Paris e seus outros alvoreceres, perseguições de toda sorte foram intensificadas e há mesmo quem prefira falar nos termos de caça às bruxas: a caça aos anárquicos. Alguns jogaram-se à clandestinidade e à ação direta, totalmente imbuídos da convicção de que um ato radical vale mais do que mil panfletos impressos, e já suficientemente vacinados contra o caráter sedativo da prática dos timoratos – “aqueles que fazem abortar todos os movimentos revolucionários por recearem que o povo, uma vez lançado na ação, deixe de obedecer à sua voz”[iv] –. Os anárquicos lançaram-se à propaganda pela ação e resolveram impor ao jugo do Grande Poder a presença inesperada da rua.

Não foi uma prática combinada por uma grande inteligência ou por uma organização internacional, mesmo que os principais nomes guardados na história das anarquias tenham comentado breve ou gravemente o tema. Também é certo que não traduz uma soma de simples atitudes de revolta pessoal. A quantidade de exemplos mostra o quanto foi difusa e dispersa, mas também o quanto foi gerada por um consenso talvez mudo acerca da necessidade do protesto vivo e ativo: como quando cúmplices comunicam sem trocar palavra.

Como estratégia de ação anárquica, a ação direta inaugura um limiar rompante de experimentação, é um projeto militante concebido em ação que busca não só idealizar-se mas realizar-se mesmo que seu ator tenha que entrar em embate direto com forças coordenadas do Grande Poder. A ação direta não é somente um propósito final para a militância, mas imediatamente a sua realização. Mesmo que as anarquias sejam imediatamente ilegalistas ou que não reconheçam em tese os preceitos coordenados do Grande Poder, na ação direta o anárquico coloca-se imediatamente entre suas forças, claramente a fim de combatê-las, sem subterfúgios. Tanto mais anárquico será seu método quanto mais reais forem as suas perspectivas de ação e mais libertários os seus efeitos.

Mesmo que a cotovelos, colocar-se entre as forças do Grande Poder para tentar inaugurar, local e forçosamente, uma nova condição real de autonomia, uma zona onde se lide visceralmente com aquilo que atua no jogo, não raro face a face com suas figuras emblemáticas ou seus objetos-fetiche. Estar aí, permanecer o quanto puder, se possível causar estardalhaço, zombaria, fazer ruídos, vandalizar, tentar causar baixas ou deserções graves, reativar sempre o tamanco jogado à moda anárquica, desembaraçar-se desta intimidade às avessas que temos com o sistema. Desejar que pelo menos um pedaço de si perceba-se fora do sistema, talvez jogar-se todo para fora dele, agir nele a despeito de sua preexistência, tê-lo nu e já em vias de desfiguração. Maquiná-lo e não ser maquinado, provar do ar que existe neste grande fora de quando as engrenagens param ou do cheiro viscoso de quando as engrenagens trancam.

Um momento de autonomia.

Arriscar conhecê-lo íntima e visceralmente.

Do que difere a ação direta de uma analítica mais geral do poder é o fato de que a primeira deseja abertamente ser pungente e clara, é abertamente voluntária e está sempre na busca de um presente inesquecível e reinaugural, mesmo que local. A ação direta não é uma analítica, senão a tentativa real e voluntária de atualização do campo de possibilidades para a liberdade ali onde nenhuma análise teórica das liberdades sonhadas faria tanto ou quanto, mesmo que fosse possível. A ação direta é a inauguração do impossível dentro deste campo de possibilidades dadas pelo Grande Poder, uma entrada ao mesmo tempo furtiva e entusiástica no jogo que preside as circunstâncias.

Aí perguntam-me se sou a favor dos assassínios.

Mas não serão a polícia e os exércitos os principais assassinos?

Não há esperança: antes mesmo da emergência da terrorismo como método anárquico, a resposta dada pelos operadores do Grande Poder já era suficientemente rigorosa em se tratando de anarquias. Os ditos presos políticos, categoria ampla que compreendia tanto os encarcerados quanto os exilados a contragosto, esses eram uma população extensa em diversas regiões ermas e prisões da Europa; os mortos engrossavam esta estatística. Kropotkine, ele mesmo preso inúmeras vezes por conta de sua militância política, ele depõe: “foram levadas perante a justiça cento e noventa e três pessoas, presas entre os anos de 1873-1875, por terem tomado parte na nossa agitação. [...] A maioria deles estivera durante três ou quatro anos em prisão preventiva, à espera dos julgamentos, e [...] nada menos que vinte e um dos presos se tinham suicidado ou haviam enlouquecido. [...] Aqueles que tinham sido absolvidos pelo tribunal, foram exilados para regiões longínquas da Rússia e da Sibéria e infligiram-se de cinco a doze anos de trabalhos forçados àqueles que o tribunal havia condenado somente a leves penas de prisão.”[v]

Advogamos a nossa cota de protesto ativo e sabemos que acabaremos mal: ou bem nos trabalhos forçados, ou bem numa longa temporada no cárcere ou na prisão perpétua, não raro na pena capital. O verão será a clandestinidade. Saibamos que foram vários os alvoreceres de Paris onde o risco fino da lâmina terminou com determinados malditos pela via do pescoço; e vários os alvoreceres em Petersburgo onde o estampido das garruchas terminou com outros tantos pela via do peito. Não raro estas cerimônias tinham o apelo do espetáculo público. E aconteceram em diversas cidades, por diversas vias, e com diversos malditos. O assassínio campeou solto, e não precisamos ir além-mar nem mesmo além das fronteiras nacionais para saber de casos semelhantes. Se, no presente, práticas como o enforcamento ou o fuzilamento já são anacrônicas no Ocidente civilizado e nem mesmo o Grande Poder consegue justificá-las sem polêmicas, é certo que outras penalidades ditas mais justas foram inauguradas para tomar o seu lugar.

Por ora, junto a uma apologia da ação direta, devemos também fazer uma apologia da prudência, e não porque não queremos apunhalar mais reis ou porque não queremos mais reis mortos, também não porque ainda tenhamos esperança, senão porque “é preciso guardar o suficiente de organismo para que ele se recomponha a cada aurora. [...] Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano.”[vi] Não queremos mais sofrer a pena principal de ter os anárquicos mortos neste embate: queremos Ravachol vivo, Henry vivo, e que esteja e permaneça vivo todo o bando armado do Matese. Queremos todos os militantes mortos pelo Grande Poder, e os queremos vivos, porque são cúmplices raros que levaram seu método anárquico ao cabo da falha fatal, e nisso não sobreviveram. Não cabe aqui fazer somente a apologia da punhalada.

Cada anárquico morto é também uma punhalada nas anarquias.

Sobre o que chamam de terrorismo anarquista, é certo afirmar que foi e continua sendo composto principalmente por malditos cuja atitude individual de disposição à ação contra os regimes de poder estabelecidos não reconhece os obstáculos formais oferecidos por estes próprios poderes. Dos pioneiros, certamente desde antes dos citados e até mais recentemente, importa é perceber os malditos optando por uma atitude de desobediência aberta e franca dentro de um sistema de acordos vigentes, agüentando suas conseqüências, e sem muita esperança.

Eis o nosso radical desespero.[vii]

Mas por que a crueldade[viii] é prerrogativa do Grande Poder?

Não queiramos ir tão longe neste momento. Podemos ter estratégias mais prudentes, se quisermos e pudermos. Deixemos de lado o assassínio e fiquemos com um novo sentido para a arte numa longa ajuda de Hakim Bey. Buscando o que ele chama de terrorismo poético, incitações: “dançar de forma bizarra durante a noite inteira nos caixas eletrônicos dos bancos. Apresentações pirotécnicas não autorizadas. [...] Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos poético-terroristas. Seqüestre alguém e o faça feliz. [...] Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência. Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc. Fique nu para simbolizar algo.” Buscando o que ele chama de arte sabotagem, queiramos algo “[...] perfeitamente exemplar, mas, ao mesmo tempo, [com um] elemento de opacidade – não propaganda, mas choque estético – aterradoramente direta, mas ainda assim sutilmente transversal [...]. Não faça piquetes – vandalize. Não proteste – desfigure. [...] Jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça.”[ix]

Os de outrora identificavam-se como assassinos delicados.

Agora, terroristas poéticos, arte sabotadores.

Nesta ocasião, o quão criminoso o Grande Poder me permite ser?



[i] Ver: Nildo Avelino. “Anarquias, ilegalismos, terrorismos” in Salete Oliveira & Edson Passetti (orgs). Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006. p.125-138.

[ii] Para uma descrição mais detalhada do assassinato do czar Alexandre II, ver: Piotr Kropotkine. Em torno de uma vida. Rio de Janeiro: José Olympio. 1946. p.408.

[iii] Ver: Acácio Augusto. “Terrorismo anarquista e a luta contra as prisões” In: Salete Oliveira & Edson Passetti (orgs). Terrorismos. op. cit..

[iv] Timorato foi o termo utilizado pelo anárquico Émile Henry durante seu julgamento, em Paris, para descrever aqueles que ainda empenhavam-se em constituir uma direção para as ações políticas do povo. Para uma exposição sobre a circunstância de seu julgamento, ver: Jean Maitron. “Émile Henry, o benjamin da anarquia” in Revista Verve #7. São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC/SP. Mai/2005. p.11-41.

[v] Ver: Piotr Kropotkine. Em Torno de uma Vida. op. cit. p.390-391.

[vi] Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “28 de novembro de 1947 – Como criar para si um Corpo sem Órgãos” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.23.

[vii] O desespero não é um estado final ou mórbido, mas um estado nobre que atingimos depois de desacreditar as esperanças do passado e as esperanças no futuro, estado que move ao ato criador e presente em sua radicalidade. Para uma discussão sobre o desespero, ver: André Compte-Sponville. Tratado do Desespero e da Beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[viii] Sobre a crueldade, ver: Clément Rosset. O Princípio da Crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. Ver também: Antonin Artaud, “O Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto)” in O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.101-115.

[ix] Ver: Hakim Bey. “Terrorismo Poético” & “Arte Sabotagem” in Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. p.13-14 & 21-22.

Clandestinos

Clandestinos. A história não guardou uma única foto dele, somente o desenho de perfil que ilustra uma das edições que coletei, republicada anos depois, de seu único livro: é um desenho simples onde ele aparece de perfil, e foi rabiscado pela obsessão de Frederico Engels 36 anos depois da sua morte. Penso que é de suspeitar que ele nunca as tenha sacado, talvez averso às fotografias ou já planejando em silêncio a sua não-incursão no campo da iconografia. Também é provável que seja somente uma fantasia minha, coisa de leitura criativa, ou uma brutal e simples coincidência. O fato é que todos os grandes autores da sua época se faziam ou deixavam fotografar abundantemente, prospectando alguma iconografia futura; quem não crê que esta iconografia influencia ou seduz os seguidores no futuro, deve perguntar-se se Carlos Marx seria o mesmo Carlos Marx e os ditos marxistas seriam os mesmos marxistas se, ao invés de toda aquela farta barba que aparece em sua foto clássica, ele tivesse o vasto e dolorido bigode de Nietzsche, ou um belo e colorido moicano à moda anarcopunk.

Falo de Johann Caspar Schmidt? Não, não.

Falo de Max Stirner, passageiro clandestino da história.

É mais provável que a história não lhe tenha sido generosa pelo contragosto que tem em guardar suas ovelhas de cor outra. Penso que seja quase certo que algum positivo foi sacado, mas já que ele prospectava ser tão somente um e por isso pouco devia fazer pela política de inclusão de seu rosto entre os demais, é mais provável que sua fotos tenham ficado perdidas no fundo de algum baú de memórias locais, e sabe-se lá aonde foram parar.

Quem seria o arquivista? Seria preciso perguntar-lhe das suas motivações: talvez o arquivista lhe tenha sido somente e plenamente generoso, e por consideração; talvez tenha dedicado a Stirner a consideração que ele requisitava em seu devir clandestino. Ele queria ser qualquer um, mas um qualquer único, e por isso apresentou-se como cruelmente devastador em sua singularidade marcante e decidida perante todos os espectros que rondam o cotidiano. Se o rosto[i] também é um espectro, assim como o nome[ii], faria sentido que ele permanecesse coeso na iconografia? Ele já deveria saber que não poderia contar com isso sob o risco de arrasar o seu próprio projeto.

Johann Caspar Schmidt não era conhecido como um membro especialmente loquaz do círculo dos Livres, onde Bruno Bauer aparecia como o grande intelectual entre os hegelianos de esquerda. Sabe-se também que freqüentou a Universidade de Berlim, na qual teve aulas com Hegel e foi colega de Bakunine, que posteriormente levaria seu único livro a repercutir na Rússia. Seus ecos são sentidos nas Memórias do Subterrâneo de Dostoevski, onde reaparece nas vozes de Raskolnikov e de Kazamarov. De resto, “o pouco que se sabe são os dados que o Estado registra: nascimento em 1806 em Bayreuth e a morte em julho de 1856. Entre estas datas, dois casamentos falhados, diplomas de estudos, duas prisões por dívidas e, tudo culminando, este livro de 1845. Marie Dänhardt a quem [Johann] dedica o Único e que se separou dele pouco tempo após o fracasso do livro, depois deste lhe ter gasto a fortuna, [...] dele tem apenas a dizer que era um dandy, um fumador compulsivo, demasiado egoísta para ter amigos.”[iii]

Um infame.

Primeiro proibido por ser considerado um livro monstruoso, depois liberado por ser considerado suficientemente delirante para ser perigoso, o impacto de O Único e sua Propriedade, escrito por Johann sob o pseudônimo de Max Stirner, foi enorme mas curto. Depois de cerca de dois anos, levadas a cabo as polêmicas que manteve com os Livres, Stirner acabou por fracassar e voltar ao anonimato. Só permaneceu coeso no disparate da história porque reviveu constantemente nas mãos de outros malditos que negaram-lhe a anti-biografia, primeiro com o poeta anarquista John McKay, nos anos 80 do século XIX, depois com o vanguardismo nas artes, agora com Pound, Joyce, Picabia e Duchamp. Na filosofia, foi entrando aos poucos e acabou sendo estudado por Buber, Sartre, Camus, Heidegger, Deleuze, Foucault e Derrida; esse último, em Spectres of Marx, de 1993, alça Stirner a um lugar de ampla dignidade filosófica. Carlos Marx leu o Único com raiva e dedicou-lhe uma crítica que tinha mais páginas do que o próprio livro tem, e Frederico Nietzsche enfrentou uma polêmica acerca de seu contato com a obra de Stirner, sendo acusado por Eduard von Hartmann de plágio puro e simples.

O Único é uma peça rara de desconcerto, o livro de cabeceira dos egoístas que não crêem na fantasia dos deuses, tampouco nas fantasias da humanidade ou das sociedades, espectros do Grande Poder; o livro dos clandestinos que não investem nos rostos e nos nomes, e que nunca estiveram lá para participar do grande teatro que preside a cerimônia. Contra todas estas efígies que pretendem rondar soberanas sobre a vida bruta no cotidiano, contra todo o espiritismo e toda a transcendência, Stirner apresenta o único. Saiba: “eu sou proprietário do meu poder, e sou-o ao reconhecer-me como único. No único, o próprio proprietário regressa ao nada criador de onde proveio. Todo o ser superior acima de mim, seja Deus ou o homem, enfraquece o sentimento da minha unicidade e empalidece apenas diante do Sol desta consciência. Se a minha causa for a causa de mim, o único, ela assentará no seu criador mortal e perecível, que a si próprio se consome. Então, poderei dizer: a minha causa é a causa de nada.”[iv]

O único sou eu, o meu poder e a minha circunstância atual, é você, o seu poder e a sua circunstância atual, regressando ao nada criador que é a vida neste corpo dia após dia, desejo após desejo, vontade após vontade, jogo após jogo: os únicos e suas propriedades, aqueles cuja causa é fundamentalmente a afirmação da vida em si mesmos, causa cujo espectro além de si mesmos é nada.

Por enquanto, já que ainda vamos falando de método, acho que é importante dizer das entrelinhas deste livro, e do contexto próprio de sua propagação. Stirner escreveu um livro forte que, em primeiro lugar, não faz concessões: não se envergonha ou se furta de tratar radicalmente de temas tabus, empregando pra isso uma linguagem direta e pungente organizada num estilo que não deixa espaço para as formas tradicionais de apresentação de um problema. Stirner lança mão desta linguagem própria para dar conta de apresentar o seu próprio problema, ele também singular e radical. Em segundo lugar, chama a atenção o silêncio que acompanha Stirner e seu livro tanto durante sua produção: ele escreveu o livro em segredo. Sua atitude, não obstante fosse singularmente radical, era totalmente oblíqua ao personalismo e, como no caso dos terroristas, sem muita esperança.

Deve ter morrido pobre e só, como outros dos nossos.

Se era fumador compulsivo, que tenham lhe restado os cigarros.

Temos também o outro caso de Hakim Bey, outro passageiro clandestino da história. A alcunha estende um manto sobre a suposta identidade de Peter Lamborn Wilson, pesquisador da pirataria que também escreveu pelo menos dois livros desconcertantes sobre as possibilidades e os desafios das anarquias nos dias de hoje: TAZ – Zona Autônoma Temporária[v] e CAOS – Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares[vi]. Inspirado na pirataria e em suas estórias, relendo as condições de possibilidade para a atividade militante na contemporaneidade, Hakim Bey fornece exemplos de rara e radical beleza, e também apresenta seus problemas com uma força, numa linguagem e num estilo que não abrem concessões aos tabus e às formas tradicionais. Hakim Bey virou uma iminência parda que acompanhou boa parcela da nova geração de anárquicos até ser descoberto em sua identidade verdadeira. Também não prospectava iconografia nenhuma, tampouco espectros de rosto ou nome: seus textos quase anônimos foram originalmente traficados por bandos de malditos através da internet.

Na pesquisa e na escrita de Hakim Bey beberemos da metáfora que nos permite entender as entrelinhas destes três livros desconcertantes que ele e Stirner escreveram: utilizando-se do modo de vida dos piratas como caso que ajuda a pensar as formas de existir na contemporaneidade, Bey conclama à ansiedade de desaparecimento como forma específica de engajamento, conclama à invisibilidade, à deserção dos circuitos do Grande Poder: quando o engajamento também vira um espectro e a militância vira ato de redundância dentro de um conjunto de leis e rotinas sobrepostas, precisamos atuar diferentemente, precisamos atuar como ratos nos subterrâneos da Babilônia da informação. Como os piratas, precisamos descobrir rotas e atalhos neste alto-mar, rotas que permitam tanto atacar de surpresa e não deixar pistas de nossa identidade em fuga quanto atalhos que nos levem rapidamente aos nossos enclaves clandestinos.

Precisamos saquear, furtar, roubar e denegrir todo o comércio que passa pelas rotas oficiais, seja ele o comércio de produtos ou de outros artigos tanto mais subjetivos quanto um rosto ou um nome: produtos-coisas, produtos-idéias, produtos-normas, produtos-gente; mas também precisamos saber desaparecer sob a máscara ou o tapa-olho, saber sumir na multidão ou na solidão deste alto-mar. Entre os nossos, em enclaves secretos em meio ao grande oceano, aí sim tiraremos a máscara que protege a face de sua exposição desnecessária, experimentaremos e trocaremos iguarias roubadas, admiraremos preciosidades sem torná-las fetiche, viveremos nossos mais intensos amores e faremos toda sorte de celebrações pagãs.

“Romãs, vários tipos de amoras, caquis, a melancolia erótica dos ciprestes, rosas de Shiraz de delicadas pétalas cor-de-rosa, jardineiras com aloé & benjoim de Meca, os caules rígidos das tulipas otomanas, tapetes abertos como jardins artificiais sobre gramados verdadeiros – um pavilhão inteiro decorado com um mosaico de caligramas – um salgueiro, um riacho repleto de agriões do brejo – uma fonte sob cristais geométricos – o escândalo metafísico que são as odaliscas banhando-se, os criados negros brincando de esconde-esconde, molhados, por entre a folhagem – água, verdura, belos rostos”[vii]: seria assim em Libertatia ou em Croatã?

Libertatia, enclave pirata e clandestino fundado pelo capitão Mission, um lugar onde a propriedade da terra era comunitária, onde representantes eram eleitos somente para períodos curtos, onde todos os saques eram repartidos entre todos, criada para ser autônoma mas temporária, sem nenhuma lei além do bom senso ou do fio da lâmina, totalmente oculta aos olhos do Grande Poder ao ponto de ser considerada uma lenda até mesmo para alguns dos bucaneiros de Madagascar que estavam habituados a freqüentar tais enclaves, provavelmente habitada por piratas, escravos fugidos ou libertos – um dos principais objetivos dos piratas era libertar navios negreiros – e por grupos de gente mestiça. Território de celebrações e excessos.

Croatã, na região do Grande Pântano Sombrio, longe do litoral da ilha de Roanoke, ilha que fica no costado do estado americano de Carolina do Norte, onde uma primeira colônia inglesa existiu entre 1585 e 1587. Nesta erma região existia e ainda existe uma tribo de índios amigáveis, com olhos cinzentos, para onde todo o povoado de colonizadores migrou, fundando um enclave multi-racial, renunciando seu contato com os ingleses colonialistas e plutocratas e optando pelo estado selvagem; abandoram os impostos, abandonaram a Igreja e adotaram o paganismo, o trabalho no campo e a educação libertária contra todos os fardos da civilização entorpecida. Deixaram pra trás somente uma mensagem críptica: fomos para Croatã.

Johann Caspar Schmidt foi pra Croatã.

Peter Lamborn Wilson foi pra Croatã.

Eu também vou.



[i] “Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. [...] O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância e freqüência. [...] Sugestiva brancura, buraco capturador, rosto.” Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “Ano zero – Rostidade” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.32-33.

[ii] “Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo a arrumar estas tribos, a dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas, a fazer prosperar outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto [...]; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele. [...] Quando se chega a este ponto, se está sozinho, mas se é também como uma associação de malfeitores.” Ver: Gilles Deleuze & Claire Parnet. “Uma conversa, o que é, para que serve?” in Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p.17-19.

[iii] Ver: José A. Bragança de Miranda. “Stirner, passageiro clandestino da história” in Max Stirner. O Único e sua Propriedade. Lisboa: Antígona, 2004. p.297-298 e ss.

[iv] Ver: Max Stirner. O Único e sua Propriedade. Lisboa (Portugal): Antígona, 2004. p.286.

[v] Ver: Hakim Bey. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Ed. Sabotagem, 2004.

[vi] Ver: Hakim Bey. CAOS – Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.

[vii] Ver: Hakim Bey. TAZ – Zona Autônoma Temporária. op. cit. p.23-24.

Hedonistas

Hedonistas. Em seu A Arte de Ter Prazer, a propósito de uma discussão sobre o materialismo hedonista, Michel Onfray empreende uma arqueologia da filosofia mundana. Em sua arqueologia, acaba por revelar entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Guy Debord e Raoul Vaneigem.[i]

O crivo de seu projeto pessoal é uma preocupação anárquica e meticulosa em resgatar os interesses e as práticas filosóficas oblíquas aos interesses e práticas filosóficas sustentadas pelas corporações régias, religiosas e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento a todas as suas leis mais ou menos estabilizadas. É com este crivo que Michel Onfray procura seus cúmplices, e para tanto precisa notabilizar e resgatar não só pensamentos insubmissos, mas métodos radicais: o cinismo e a ironia reaparecem como métodos filosóficos, bem como todo tipo de chiste ou charada, de escárnio ou protesto ativo.[ii]

Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria maldita revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade de existir pensamento sem os seus cruzamentos com a experimentação e o prazer; homens e mulheres para quem os instantes fugidios de sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime. Os malditos hedonistas têm uma perseverança que não é da ordem do pensamento analítico, tampouco da ordem do saber sistemático. Todo maldito precisa antes de tudo forjar novos métodos, os seus próprios, e para qualquer maldito o ato de forjar novos métodos é principalmente uma questão de forjar atitudes que reafirmem a potência que percebe na vida em cada um dos seus instantes sucessivos.

A potência de uma vida é o que lhe faz digna de ser vivida.

É na potência de uma vida que reside a possibilidade do prazer.

Nesta outra galeria, os malditos lançam mão de outros procedimentos ou programas, e talvez nem lhes seja conveniente ou adequado seguir falando de um método. Certamente seria melhor dizer de um não-método, de uma estratégia ou falar simplesmente da afirmação do charme de uma trajetória: “O charme, fonte de vida, [...] é o que faz apreender as pessoas como combinações e chances únicas que determinada combinação tenha sido feita. [...] Por isso, através de cada combinação frágil é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança ímpar no ser.”[iii]

Ao percorrer novamente esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais, Michel Onfray acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Não bastasse uma nova qualidade para os métodos, ele apresenta toda uma nova possibilidade de lugares onde a filosofia pode ser exercida: em se tratando dos malditos hedonistas, ela também acontece nos banquetes, nas bebedeiras, nas viagens e errâncias para lugares distantes e desconhecidos; e também nas alcovas, ali onde se desenrolam as grandes histórias de amor e sensualidade. “A espelunca, o cabaré, a taberna se alçam à dignidade de lugares filosóficos. Submersos em montes de perdizes assadas, evoluindo entre mulheres afáveis, grandes consumidores de vinho fresco, os eruditos libertinos se encontram, escondidos do poder que persegue os marginais, para rir, beber, comer, traquinar, mas também escrever versos subversivos, trocar idéias progressistas, ironizar o velho mundo que se trata de destruir: [...] os libertinos optam pelo efeito desconstrutor do humor, do cinismo e de todas as versões do recurso à caçoada.”[iv]

Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes malditas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética, elixir filosófico. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser só carne maculada por nossa condição demasiado humana: os usos do corpo estão submetidos aos registros da utilidade, do engajamento e do silenciamento; toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais que favoreçam a polidez social; as paixões são coisa frívola frente às diferentes formas de idealismo e racionalismo; o prazer não faz parte. A figura do grande filósofo já é imortalizada: desde Rodin, ele está sentado, o cotovelo apoiado no joelho, o punho fechado escorando o queixo, a grande cabeça que pende a segurar o cenho franzido.

Do filósofo original nasceram todos os pensadores tradicionais.

“Le Penseur de Rodin... coitado... nunca se viu ninguém fazendo tanta força para pensar!”[v] – mas o avatar da filosofia não é uma cadeira, tampouco um punho cerrado sob o queixo. É preciso evitar Rodin. Mesmo que tenha sido esculpido para outra porta, hoje ele jaz sentado junto ao busto grego de Platão como seu correspondente renascentista, ambos na entrada do museu das virtudes filosóficas oficiais, museu esse que celebra as glória do espectro homem. À moda dos solenes anfitriões, ambos guardam a porta, justificam com sua presença o preço dos ingressos, fornecem o protocolo de proibições e indicam guias treinados em línguas latinas e germânicas. Em dias de sorte, dependendo do horário e da estação do ano, avisam também da presença da Verdade, a faxineira, e então o alvoroço é geral.

Filosofia à moda anárquica, os malditos fazem porque não apenas projetam uma ferramenta dita marginal como vivem-na com uma densidade especialmente provocadora. Os trajetos que Michel Onfray revela apresentam a possibilidade de uma filosofia produzida não somente por grandes ilustres, suas cadeiras e cenhos franzidos, mas também uma filosofia feita por toda sorte de hedonistas que teimam não conceder ao pensamento os privilégios que lhe conferem as instituições de tutela: “na galeria dos hedonistas, encontram-se, com efeito, exibicionistas, bêbados, pederastas, sodomitas, monges e monjas atéias, músicos vagabundos, médicos exilados, libertinos presos, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão ou se batem em duelo, travestis que impregnam o corpo de perfumes. [...] Eles elegeram o banquete ou o cabaré contra a Academia ou a Universidade, a prisão ou a fogueira contra a Instituição ou a prebenda. [...] A ética torna-se uma arte de viver no cotidiano, longe da ciência absconsa das codificações castradoras.”[vi]

Uma arqueologia da filosofia hedonista fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, e fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, tanto mais maldita quanto mais conseguir cruzar momentos culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, talvez instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime. Uma filosofia tanto mais maldita quanto mais ligada aos temperamentos rompantes que investem cotidianamente na vida com uma força que articula sabedoria filosófica, potência política e prazer, que articula saber, poder e prazer.[vii]

Cada um a seu modo, normalmente ignorando os axiomas de rigor e os tratados de boa educação, os malditos hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de experiências sublimes. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva da vida, os malditos hedonistas querem mais: mesmo que entendam a vida em sua infinita produção e seu exercício cotidiano como constante mutação, é preciso ter as experiências tragicamente culminantes, é preciso cristais de gozo, o tesão no aqui e no agora. De outro modo, se a ascese filosófica e mesmo a crítica devem ser investidas com uma índole de sacrifício, o cenho franzido em favor de um caminho ascético ou científico, então o maldito hedonista fará tudo menos uma ascese ou uma ciência: ele será o filósofo da poética e do escárnio apresentando a perseverança ímpar na vida como maior ato de resistência ao interesse civilizatório.

Seu exercício consiste não em propor grandes teorias, mas em contar ou descrever grandes cenários que ele viveu especificamente. Em seu cotidiano, precisa descrever as grandes histórias de errância, mas também experimentá-las contra todas as histórias de tédio e timidez. Ele precisa saber que não basta somente ler, refletir e escrever, mas também dançar e beber o quanto puder.

As infinitas folhas da enciclopédia civilizatória são usadas pelos malditos hedonistas de forma inconseqüente, não raro servindo para limpar mãos e bocas no fragor das comemorações. Histórias de arrebatamento conseguem suscitar uma filosofia que não tem par em nenhuma outra que seja fruto dos métodos tradicionais encontrados na leitura de quaisquer dos manuais do Grande Poder. Para os hedonistas, toda filosofia e toda possibilidade de alguma ciência vêm numa nova sensação, surgem de uma nova posição radical e geram uma circunstância outra para o pensamento. Uma filosofia e uma ciência onde toda nova intuição servirá de charada primeiro para si e depois para as esfinges.

Uma arqueologia maldita procura aqueles que entraram descalços no museu das virtudes filosóficas oficiais, aqueles que percorreram suas salas não atrás das explicações de um guia treinado, mas de um exercício lúdico entre os tantos cruzamentos que este labirinto proporciona, para então rir e desencaminhar esta experiência de visitação, a despeito do filósofo sentado ou do busto de Platão.

Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices.[viii]

Mas, mesmo entre cúmplices, ele desejará mostrar que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o maldito hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Não raro, emitiu sua filosofia desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de controle e tutela. Algumas vezes teve que escrever com sangue. Como no caso dos terroristas, os malditos hedonistas também são perigosos: é que um pouco mais de felicidade em nossa vida e colocamos à vista de todos uma outra e nova possibilidade, e nisso há uma faísca de ferocidade que pode facilmente atear fogo no cotidiano.

Para o maldito hedonista, só será possível rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tratarmos a vida de forma digna e tivermos o hábito de dar-lhe forma de arte; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[ix].



[i] Ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p.227-311.

[ii] Michel Onfray vem redigindo vários tomos de uma contra-história da filosofia. Os originais já apresentam oito volumes, e já temos tradução dos dois primeiros, aqueles que tratam, respectivamente, das sabedorias antigas e do cristianismo hedonista. Ver: Michel Onfray. Contra-história da Filosofia Vol.1 – As sabedorias antigas & Contra-história da Filosofia Vol.2 – O cristianismo hedonista. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Para os demais tomos originais em francês, procurar no catálogo da Ed. Grasset, de Paris.

[iii] Ver: Gilles Deleuze & Claire Parnet. “Uma conversa, o que é, para que serve?” in Diálogos. op. cit. p.13.

[iv] Ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.261.

[v] Ver: Mário Quintana. “O dificultoso” in Caderno H. São Paulo: Globo, 2006. p.247.

[vi] Ver: Michel Onfray. Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.235-236.

[vii] Sobre as articulações entre saber, poder e prazer a partir de uma perspectiva hedonista, ver: João da Mata. Prazer & Rebeldia – O materialismo hedonista de Michel Onfray. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

[viii] “Não posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazer parece-me interromper o processo imanente ao desejo; o prazer parece-me estar do lado dos estratos e da organização; é no mesmo movimento que o desejo é apresentado como submetido de dentro à lei e escandido de fora pelos prazeres; nos dois casos, há negação de um campo de imanência próprio do desejo”. Ver: Gilles Deleuze. “Desejo e prazer” in Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. vol.1. n.1. 1993. p.22.

[ix] Ver: Michel Onfray. “Estética: pequena teoria da escultura de si” in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. p.65-101.

Vida

Vida. Contra o enciclopedista, o franco-atirador: ainda a propósito de uma discussão sobre o método, seria sempre possível retomar Paul Feyerabend e sua teoria que vulgarmente resumimos no tudo vale . Daí, tomando como referência qualquer uma das suas discussões, poderíamos puxar e discutir ou simplesmente falar sobre uma outra lista extensa e complexa de epistemólogos disponíveis, dos mais positivistas aos mais anárquicos. Também poderíamos fazer uma revisão sobre as concepções de ciência e universidade presentes em grande nomes da história das anarquias . A ciência é tema que já foi ampla e fartamente trabalhado e há bibliografia disponível para discussões complexas que justificariam não só um capítulo ou sessão, mas várias teses de doutoramento. Atualmente, podemos encontrar aliados que permitam uma nova concepção de ciência e uma nova prática acadêmica até mesmo fora do ambiente mais propriamente anárquico, e nisso também dialogar com cúmplices outros .
Mas não: é preciso deixar de lado os problemas que já foram pisados e repisados. Aqui, até agora, optei por enfatizar vidas, modos de vida; pessoas, experiências e não teorias: até agora, terrorismo, clandestinidade e hedonismo. Que tenhamos discussões de outra ordem, normalmente relacionadas aos pressupostos de base ou às rotinas de trabalho científico, e também refinamentos sobre seus pressupostos de constituição cotidiana, e que isso também seja certo ou correto, tudo bem. Também as faremos mais adiante. Agora, porém, a questão do método diz respeito às estratégias necessárias para que determinados objetivos sejam alcançados na produção de pensamento, e não às condições gerais de execução destas estratégias. A questão não é faça se, mas faça-se. Vire-se. Faça acontecer.
Se pensarmos o caso do trabalho acadêmico, e nele quisermos algum método como aqueles dos terroristas, dos clandestinos e dos hedonistas, um método radicado na vida cotidiana, no corpo pulsante em vias de autonomia, nos cristais de gozo, então nosso método consistirá primeiro nas estratégias necessárias à exploração desta vida de agora, neste corpo de agora, e não propriamente nas condições gerais para esta exploração.
Se um trabalho acadêmico sugerir qualquer espécie de filiação à ciência, espectro, e para isso desejar angariar para si mesmo algum pressuposto de generalidade sobre o que está apresentando, ou desejar angariar quaisquer dos outros pressupostos que fundam a possibilidade do (des)conhecimento científico, então é realmente melhor que o autor deste trabalho diponha de algum dos métodos científicos existentes, ou forje o seu. Serão, fartamente, os métodos científicos os mais apropriados para que este trabalho logre seu sucesso e, a despeito da ciência, devemos buscar principalmente isso: que as estratégias permitam que determinado projeto logre resultados satisfatórios, e nisso produza algum pensamento. Adianto que não há nada contra o método científico: se alguém quer empregá-lo, pois faça-o e seja feliz.
O que passa é que, no cotidiano de produção e em grande parte das discussões da própria universidade, pensando especialmente o ambiente das ciências ditas humanas mas sabendo que não só nele, o fato é que as discussões que remontam as críticas da verdade e da generalidade já estão muito bem feitas, polêmicas instauradas ou não. Já há suficiente fôlego para que um trabalho acadêmico não só opte como opere uma anti-ciência ou uma ciência menor . É preciso afirmar uma única e última vez, e depois seguir adiante: a produção de pensamento não está subordinada à produção científica. O que acontece é justamente o inverso: a produção científica é uma das formas possíveis de produção de pensamento, uma estratégia, nem a única nem necessariamente a melhor. O acordo científico é uma estratégia possível porque também arranja a experiência vital de alguém que coloca-se neste lugar de desejar pensar, porque fornece determinada qualidade de estímulos para que o pensamento aconteça ou não, de tal ou qual maneira.
Se a suposição é de que o método científico é o único capaz de garantir a segurança na transposição da ponte que leva da ignorância ao saber, bem, esta suposição deve ser abolida não somente em discussão mas em atitude. Da minha parte, vejo que o pensamento é algo raríssimo e que sua emergência está menos ligada a um tipo específico de método do que a uma forma específica de encarar a vida. Em decorrência disso, na minha opinião, um trabalho acadêmico que vise a emergência do pensamento não tem sentido algum senão na tentativa de esgotamento da própria vida.
O estratégia não é sobreviver, mas viver.
O desafio é antes de tudo viver ao ponto de ousar pensar.
No caso específico da discussão sobre os métodos científicos, dentro de uma intuição que beba do desejo de anti-ciência, creio que eles precisariam ser esgotados e avariados, vilipendiados ao extremo tanto de sua força quanto de sua fraqueza. O método científico precisaria ser experimentável e não experimental; precisaria ser vivido e não aplicado.
Já no caso dos métodos outros, o desafio é principalmente a escrita, porque é através dela que conseguiremos dar existência a este conjunto de intuições que nos ocorrem enquanto esgotamos a vida com nossa própria carne, tantas vezes perplexa, tantas vezes extasiada, sempre em vias de expressar-se diferentemente. É preciso deixar que ela comunique o que se passa no corpo, ou que tente comunicar; é preciso esquecer as palavras de ordem que nos ensinam como quem fornece pás e picaretas aos operários e falar mais livremente.
Abster-se de operar o método científico em favor de uma estratégia vital, aos olhos dos guardiões da ciência, é um tentativa de leviandade ou descompromisso com o rigor de um trabalho. Como elemento que condiciona uma ação, o método científico cobra seu preço: é preciso bater ponto pra fazer ciência. Há ainda aqueles guardiões arrependidos que fazem crer que não é preciso bater ponto para os maus métodos, mas que é preciso para os bons. Normalmente defendem um método que seja qualitativo ao invés de quantitativo. Na minha opinião, simplesmente fumam sem tragar. Apressam-se em dizer que não há sentido algum em falar do anti-método e da anti-ciência porque sempre há, sim, um método e que ele sempre leva a uma certa concepção de ciência, que o anti-método leva somente à anti-tese, e não é isso que devemos apresentar à época das cerimônias. Para mim, são iguais aos grandes avatares, com sutis variações de temperamento: desejam o exercício científico assegurando o rigor que preside e baliza o surgimento do raciocínio verdadeiro e verificável.
Para mim, a questão da regularidade esperada na ciência reside menos no fato de um método presidir o surgimento do raciocínio verdadeiro e verificável do que no fato de ela ser rotineira e previsível. Os métodos científicos, em sua maioria, não consistem em estratégias de pesquisa, e são poucos os que falam de determinada ética de pesquisa; em geral, tratam de rotinas de trabalho divididas em coleta de dados, catalogação de dados e, finalmente, análise de dados. Os métodos científicos são favoráveis ao trabalho rotineiro do arquivista, e sempre que ele for um bom arquivista, todos poderão voltar aos originais para percorrer novamente um caminho.
É certo que precisamos também de um grau de estatística; como já falei, o problema não é que o método científico seja operado por alguém que o deseje, mas que este método seja condição hegemônica para qualquer um que queira ousar pensar. A estatística, seja ela numérica ou lingüística, isso também é necessário porque é certo que o preço do pão sobe vertiginosamente e que algumas frases são recorrentes demais. É preciso marcar estes processos direta ou criticamente e dar louvores à também nobre função do arquivista.
Ao assumir um estratégia vital, porém, trata-se de viver à moda do cartógrafo e de assumir tanto seu outro rigor quanto todos os seus outros riscos . O trabalho criado como ciência menor oferece um rigor da rotina ética, estética e política : pensar passa a ser extrair criativamente da experiência novos pontos de balizamento para si e para o mundo, e para isso é necessário preencher o cotidiano não de rotinas de uso, mas de sensações, preencher-se de emoções para dar visceralidade à memória, rabiscar mapas de si e do mundo em papéis diversos ou na própria pele, traçar rotas improváveis, persegui-las de forma improvável, fazer figurações das coisas e de seus arranjos, construir maquetes do imaterial, enviar memorandos e cartas diversas, sacar fotografias furtivas, filmar o imprevisto... é preciso gastar a vida, fazê-la digna de ser vivida.

22.6.09

Novos manifestos

Novos manifestos. Sobre a escrita, comunição, gosto de exercê-la como a exerce o maldito. Se conseguir neste meu exercício pessoal e íntimo a abolição da ascese científica sisuda a alimentar a economia dos maus hábitos, então sei que poderei angariar para minhas memórias principalmente as atitudes oblíquas e os exercícios prazerosos destes anos de doutoramento, a alegria da convivência e a espessura dos inebriantes encontros; poderei angariar alguma poesia, algumas reflexões e algumas marteladas.

O crítico se colocará com distância, e mesmo alguns genealogistas ou cartógrafos o farão. Já foi dito que os excessos do maldito são criticados até por alguns cúmplices. A gentileza e a cordialidade parecem ter tomado conta da moral do ambiente, e num certo sentido acabam confirmando o pacto contra a crueldade que persiste entre damas e cavalheiros. Dentre as inúmeras gentilezas e cordialidades oferecidas no ambiente, a presença da escrita e sua possibilidade de publicação é como a mais bela flor. A escrita tanto é tomada como o último requisito da ascese científica, servindo de principal operador nas suas principais cerimônias, quanto é tomada como a maior laura de todas, e até os ministérios aplaudem o texto em revista afamada.

Nossa escrita gentil e cordial, ou seja, nossa distância.

A escrita maldita, desinteressada do tédio das cerimônias oficiais e da mesmice das revistas afamadas, é antes um golpe de martelo no disparate, entrada entusiástica no jogo das verdades. O asceta termina sempre numa argumentação inteligível e bem concatenada, a língua selvagem domada na construção de um argumento entre quatro paredes. Já o maldito reencontra-se sempre sobre os abismos de si e do mundo, nos limites de qualquer visibilidade ou enunciação, é equilibrista entre as fronteiras, malabarista dos limites, terrorista, clandestino e hedonista. Ele deambula entre abismos como quem dança solto em um campo minado.

O maldito filosofa em campo aberto: se suas imagens não revelam o foco de lindas paisagens vistas do topo de uma ravina, tampouco revelam os positivos de uma trajetória ascética, é porque revelam quedas e transmutações, deambulações, imagens em movimento. O maldito reencontra-se sobre os abismos e a escrita só lhe interessa enquanto cartografia das quedas, autobiografia do tempo em seus instantes sublimes, cenários vividos na urgência das leis da gravitação. Em sua última página haverá sempre a urgência de uma derradeira palavra poética sobre o que passa nos momentos de um homem em seu último vôo, religando céu e terra no corpo no derradeiro instante de arrebatamento onde mata-se toda a morte. Um corpo em convulsão na esquina de inflexão da história, inteiramente marcado por sua presença, inteiramente arruinado ou doido por ela.

Não haverá escrita possível entre a estética das cerimônias e seus manuais de redação; esta claustrofobia deve ter fim. O maldito rasga o sentido da norma, repele e recusa seus ardis; abusa da primeira pessoa e não tem medo nem das palavras que se repetem, tampouco de sonoridades que confundem. Escreve um texto para ser lido em voz alta entre amigos, um epitáfio fabuloso que investirá de vontade o carnaval de seus funerais. Ele não poupará a expressão, mas evitará os chavões; de quando em vez, fabricará parágrafos de uma só frase e cometerá sua repetição; inventará palavras e lançará mão de subtítulos que ajudam na passagem direta ao ato. E sempre dobrará a surpresa de uma esquina antes de qualquer novo argumento. Ele escreverá sentado na chuva e não explicará seus porquês; acreditará nas onomatopéias e descobrirá as mais humanas, destacando seus gritos e grunhidos urgentes sob o rumor infernal da história. Entregará sua escrita à gravitação, mas terá imprimido suas marcas somente em papel laminado, com claras instruções para que cada página seja lida ao grande sol de meio-dia. Será de sua preferência apagar os rastros enquanto viaja solto no turbilhão do tempo, permanecendo solto das agarras do espaço.

É urgente inventar novos manifestos.

Urgente.

Também interessa ao maldito o exercício psicopatológico de falsificação; este exercício importará mais do que a significância ou a fixação de protagonistas numa grande estória qualquer. A seriedade e a preocupação com as últimas conseqüências da verdade serão motivo de seu escárnio. Além disso, o maldito é dado à fabulação: a fabulação como exercício estratégico dotado de virtude rebelde, quando tanto mais fabulosos forem os instantes que uma vida única pode descrever, tanto mais feroz será seu pensamento crítico. A comédia, a charada e o chiste interessam como arranhões anárquicos na história, assim como as atitudes deliberadas de escárnio ao fazer e contar histórias à tradicional, ao desejar a filosofia e a ciência à tradicional como aqueles que desejam assassinar Henry, ou fotografar Stirner, ou procurar Bey, ou pensar à moda Rodin, ou arquitetar a cirurgia porcina de Abelardo.[i]

O sertão ainda não virou mar e minha cartografia é árida.

De resto, é preciso esquecer todo o espiritismo.

Como disse minha amiga Vera[ii], menos prosa e mais poesia.

E à vera.



[i] Para conhecer Abelardo, seu amor por Heloísa e as conseqüências porcinas impostas pelo Grande Poder, ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.229-233.

[ii] Ver: Vera Schroeder. “Menos prosa e mais poesia” in Roberto Freire & Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida. São Paulo: Francis, 2006. p.252-266.

Geografia

Geografia. Primeiro ponto para um programa vital: percorrer tua cidade a esmo, sem que tenhas trajeto pré-definido e sem que tragas um mapa à mão. Para tal programa, uma sugestão descartável seria encheres o tanque do carro, ou pegares o primeiro coletivo, ou dobrares a primeira esquina, ou simplesmente dares o primeiro passo; enfim, dar-te logo ao caminho, aquilo que só adquire sentido a partir do movimento. Posto a caminho, traça teu percurso pelo tempo que considerares suficientemente confortável ou prudente, e eis teu limite. Quando chegares neste momento remoto da tua errância e estiveres sobre teu limite, facilmente estarás cara a cara com a amplitude da cidade que teu discernimento consegue suportar, estarás corpo a corpo em zonas de confronto direto com aquilo que te angustia ou fascina, sensações-limite que ostentas entre determinadas topografias urbanas.

No ponto remoto da tua errância, sobre as fronteiras do considerado confortável ou prudente, aí estarão não só as bordas da tua cartografia da cidade em seus territórios de aço e concreto; e não só as bordas da tua cartografia cognitiva, teus territórios de discernimento, visibilidade e direcionamento: estarão também as bordas da tua cartografia afetiva em suas intensidades invisíveis, ali onde as sensações, seus potenciais e limiares, transformam-se em inevitáveis curvas de deriva no cotidiano da tua experiência.

Um passo e serás forçado a pensar.

A geografia, além de uma geografia física e cognitiva, é também uma geografia afetiva; é na mais contundente co-extensão entre estes três estratos que poderemos pensar tanto uma excursão topográfica nos relevos da cidade quanto uma interpretação dita política sobre os corpos e liames que os preenchem. O movimento que a cidade percorre em sua apropriação e distribuição no terreno, assim como os diferentes dispositivos materiais e lógicos dos quais a metrópole lança mão para existir, todos os seus territórios de concreto e discernimento, tudo isso só pode ser compreendido em co-extensão com os movimentos afetivos que lhe são ou foram correspondentes.

Para cada conjunto de encontros e desencontros com as ruas e alamedas, as praças, parques ou passeios, as casas e prédios; para cada conjunto de encontros e desencontros com as suas inscrições, nomes e signos populares; para cada conjunto de encontros e desencontros entre as velocidades, sentidos e desvios da cidade; para cada um desses conjuntos, todo um conjunto de encontros e desencontros com os campos afetivos que lhes são co-extensivos, encontros e desencontros com as diversas zonas intensivas, com as diferentes possibilidades sensitivas que irrompem sobre e arrebatam completa ou parcialmente cada um de nossos corpos.

Na geografia afetiva encontramos as sensações, as intensidades, e é esta dimensão sensorial que se processa no corpo que força-nos a territorializar cotidianamente uma nova existência, um novo corpo que acabe por expressar-se também cognitiva e fisicamente. O corpo é uma forma de resposta às sensações inéditas que em nós se inscrevem quando entramos em contato com as diferentes situações nesta nossa errância a meio caminho, o modo de vida como uma resposta àquilo que uma cartógrafa chamou de marcas[i]: estados inéditos que são inscritos na experiência do corpo, estados de desassossego que ele vai sentindo à medida que entra em contato com as diferentes configurações dos fluxos intensivos, com as diferentes tramas de intensidades e os diferentes vetores de força que agenciam e compõem as situações e acontecimentos de uma errância.

Cada uma das marcas inéditas que vão sendo inscritas neste corpo acaba por demandar uma outra articulação que a possa existencializar, dar-lhe um território existencial a partir do qual este mesmo corpo ganhará espessura.

Somos obrigados a pensar; o pensamento não é algo dado ou evidente, mas um acontecimento raro cujo sinal aponta para o descontínuo em determinada trajetória de vida: a cognição vira pensamento somente quando o pensar ocorre de maneira diferencial, dando resposta a um conjunto intensivo e inédito de afetos e sensações. Da mesma forma, o ato somente pode ser chamado como tal quando se apresenta como a elevação do diferencial, ficando todo o resto dotado somente do poder de permanência. Na gênese do viver está sempre presente a dinâmica de um devir, um constrangimento à produção de uma diferença. Somos constantemente coagidos à elevação do diferencial, mesmo que nossa teima seja ainda não saber aceitar ou lidar com a liberdade e a responsabilidade que isso acarreta.

Quando a dimensão intensiva demanda cotidianamente o trabalho de produção de novos territórios existenciais, ela demanda nada menos do que a produção de um complexo modo de vida; ela demanda, por constrangimento ou por acaso, a produção não só de si, mas da própria cidade. De acordo com as diferentes configurações deste campo no qual estamos inscritos, nosso plano de imanência, somos forçados a produzir tanto uma escultura viva de si[ii] quanto uma realidade do fora, dando a este conjunto uma especial e necessária consistência vital e material.

A cidade é constantemente transversalizada por esta rede rizomática[iii] de intensidades, rede que teima não respeitar os conjuntos de áreas loteadas, os limites de velocidade, os sentidos da circulação e as palavras de ordem das organizações oficiais. As intensidades, em sua virtude dissidente, forçam-nos a inscrever nosso corpo na cidade sempre diferentemente. Para perceber este movimento só é necessária uma longa preparação. Nenhum método consegue capturar esta rede rizomática de intensidades, pelo menos não capturá-lo de todo.

Assumindo este rigor criativo, os riscos já não são os da ciência tradicional, principalmente o erro e o perecer; ligados a este segundo tipo de estratégia estão os riscos mais fatais, e a imprevisibilidade da criação como ato de ousadia perante tudo o que experimentamos de matéria-prima é só um deles, e dos menores: alucinar, delirar ou enlouquecer de toda forma, apaixonar-se perdidamente ou morrer de raiva, perder noites insone ou dormir dias inteiros, gargalhar ao ponto de doer ou chorar todas as lágrimas acumuladas, sentir o sangue fervendo, sentir um peso nos ombros, um frio na barriga, dor nas juntas, enxaquecas. Uma estratégia vital chama-nos não só a pensar, mas a sentir o possível, a tocá-lo e ainda a ousar perante o possível; chama-nos aos limites, aos encontros, aos abismos. É certo que este conjunto de forças pode fazer emergir o erro inato que está atuando sempre, e nada nos fornece a certeza de uma miragem sem ruídos, nada nos oferece a certeza de fazer sentido, oceano revolto de intuições.

Arrisque-se.



[i] Ver: Suely Rolnik. “Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico” in Cadernos de Subjetividade. op. cit.

[ii] Michel Onfray, no projeto de um materialismo hedonista, utiliza a escultura como modalidade de trabalho a ser levada em conta quando da formulação de um modo de vida, oferecendo o corpo e a escultura como forma de cuidado de si. Ver especialmente: Michel Onfray. “Estética: pequena teoria da escultura de si” in A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p.65-101. & Michel Onfray. “Corpo” in A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p. 99-225.

[iii] “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em algum lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma” in Gilles Deleuze & Félix Guattari. ‘Introdução: rizoma’ in Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo, Editora 34, 1995, p.18.