6.10.07

cartograma#89 - fragmento, 2004.

No que diz respeito a uma problematização acerca do corpo como objeto de estudo, encontramos Gilles Deleuze e Félix Guattari (s.d., 1996) e seu corpo sem orgãos, interação maquínica e produtiva agenciada em determinado platô da história, segundo suas condições intensivas e políticas. Corpo sem órgãos como suporte de uma estratégia de corporificação que busca produzir modos de vida possíveis desde a condição desejante até a existencialização de territórios; interação de carne, afeto e língua formulada segundo as afecções e matérias de expressão encontradas em determinado plano de consistência.

Michel Foucault, formulando a idéia de sociedades disciplinares e de biopoder para forjar uma explicação sobre o desenvolvimento do modo de vida moderno, também operou este objeto como o de sua eleição, desenvolvendo uma genealogia do corpo e da população. Especialmente em Vigiar e Punir (2002b) e Em Defesa da Sociedade (2002a), Foucault apresenta o entendimento sobre a modulação dos corpos como ecologia produtiva. Na disciplina, evidencia a composição e a colocação destes corpos dentro de regimes de espaço, tempo, ritmo e cadência que buscavam tanto sua docilidade política quanto sua eficiência produtiva como substrato para o funcionamento do sistema social. Adiante, nos conceitos de biopoder e de governamentalidade, evidencia a formulação de estratégias voltadas para o coletivo dos corpos – as populações –, estratégias essas que produziram o entendimento e o gerenciamento do coletivo dos corpos a partir de um investimento em instâncias reguladoras, sejam elas doutrinárias, estatísticas ou institucionais.

No ferramental esquizoanalítico, é o corpo intensivo vertendo para além da organicidade estabelecida, agenciando sempre a composição de novos territórios existenciais; é o corpo sem órgãos como plano produtivo, do estrato orgânico ao afetivo e ao intelectivo, os territórios existenciais constantemente forçados a diferir na violência e no transtorno das marcas intensivas, das intensidades corporais. Para Foucault, é o corpo que produz, no contato com um disperso e difuso jogo das forças, uma interpretação de si no mundo, interpretação essa que busca fornecer as condições para a produção de uma sociabilidade na qual ele poderá inscrever-se.

Em qualquer dos casos, é coincidente a opinião de que o pensamento – ou a episteme – surge para dar conta dos efeitos que se produzem entre os corpos na forma de intensidades afetivas (no primeiro caso) e efeitos de poder (no segundo caso). Michel Onfray (1995, 1999, 2001), na esteira de Friedrich Nietzsche, é ainda mais atroz e evidente acerca desta matéria dinâmica que seria o substrato da vida:

“O corpo já não é o obstáculo que separa o pensamento dele mesmo, aquilo que ele deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar para alcançar o impensado, ou seja, a vida. Não é que o corpo pense, mas, obstinado, teimoso, ele força a pensar o que se furta ao pensamento, a vida. Já não se fará a vida comparecer diante das categorias do pensamento, lançar-se-á o pensamento nas categorias da vida. As categorias da vida são precisamente as atitudes do corpo, suas posturas. ‘Nem mesmo sabemos o que pode um corpo’: em seu sono, em sua embriaguez, em seus esforços e suas resistências. Pensar é aprender o que pode um corpo não-pensante, sua capacidade, suas atitudes ou posturas” (Onfray, 1999, p.96).

Falar de biopolítica é falar deste investimento que se faz sobre as categorias da vida, delimitando e demarcando tanto as posturas do corpo quanto as interpretações acerca da realidade; biopolíticas são as estratégias formuladas coletiva e extensivamente para dar conta da nossa inscrição no mundo. Quando falamos, a propósito do título deste projeto, de estratégias biopolíticas para uma ecologia da resistência, queremos apresentar a possibilidade de uma discussão que acompanhe este investimento sobre as categorias da vida, suas delimitações e demarcações, procurando extrair daí a formulação de uma ecologia que privilegie tanto o ser como potência quanto o real como processo.

Durante minha dissertação de mestrado, tive a oportunidade de propor que tanto o desenvolvimento da ecologia capitalista quanto o desenvolvimento da ecologia comunista, pelo menos enquanto tomaram forma durante o breve século XX, equivocaram-se no tratamento dado a esta fórmula proposta por Onfray. Sobrepondo estratégias unívocas sobre as categorias da vida, tanto a ecologia capitalista quanto a ecologia comunista provocaram uma amarração do corpo militante; promoveram dispositivos de captura e permanência que constantemente anestesiaram a imprevisibilidade necessária a uma ecologia da resistência. Tanto a doutrina de virtude capitalista quanto a doutrina de virtude comunista anestesiaram a potência dos corpos e a processualidade do real, anestesiaram uma ecologia de virtude resistente.

Parto do princípio de que um novo tipo de hegemonia materializa-se entre nossos corpos no espaço-tempo contemporâneo, precipitando a ascensão de uma nova configuração da ecologia produtiva global, a ordem mundial imperial. Império é o nome dado por Michael Hardt e Antonio Negri (2001) a uma nova e complexa articulação entre (1) mecanismos de um mercado global de capitais como ordem econômica mundial, (2) princípios de uma nova constituição de soberania supranacional como ordem política mundial, e (3) estratégias biopolíticas de controle dos corpos como seu modo intensivo e correspondente de corporificação. O Império é o novo modo hegemônico de gestão da vida; a ecologia imperial é a ecologia hegemônica no espaço-tempo contemporâneo.

Sobre o modo de corporificação inerente ao Império, cabe dizer que é a característica mais importante de todas as elencadas. Não é o caso de pensar que as demais características não sejam problemáticas. Esta última, em especial, é como a característica que fornece ao Império seu poder de legitimação, convocando sua autoridade e superestrutura desde os vasos mais capilares da sociedade, desde todos os pontos de onde se produz a própria vida.

É no campo da biopolítica que Negri e Hardt percebem o processo de intensificação dos aparelhos de captura na transição das sociedades disciplinares às sociedades de controle: ao passo que novos sistemas de comunicação, informação e espetáculo articulam-se, acompanhando o declínio das instituições que mediavam as relações sociais, as estratégias imperiais funcionam de forma cada vez mais disseminada e difusa entre o tecido social, acompanhando cada corpo imediatamente dado como alvo e ponto emissor destas estratégias massivas. Esta incidência das estratégias imperiais, uma incidência que funciona efetivamente no âmbito de cada corpo e em todos os momentos, toma a totalidade da vida em seu investimento; a produção imperial tem como principal produto a própria vida, em toda a sua extensão.

Michel Foucault (2002a, 2002b) já havia descoberto nesta instância biopolítica – material e imanente – o substrato que coloca a vida em movimento, acionando então o disparador do pensamento para uma produção ulterior de saberes e verdades, territórios existenciais a partir dos quais afirmamos nossa existência. Da disciplina ao controle, agora com Gilles Deleuze e Félix Guattari (s.d.), e também com Antonio Negri e Michael Hardt (2001), o que vemos é um processo de intensificação desta incidência do Império entre os corpos, gerando as mais variadas formas de anestesia dentro de diversificados e cada vez mais refinados circuitos de captura.

A reflexão sobre a biopolítica aparece, agora, como campo privilegiado. Torna-se cada vez mais necessária a reflexão sobre o corpo como a máquina a partir da qual a vida é posta em movimento, assim como a reflexão sobre como se inscrevem nesta instância os aparelhos de captura que obturam a potência do ser e a processualidade do real, incidindo na produção da vida de forma a bloquear a emergência de uma ecologia da resistência.

Guy Debord (1997) chamou esta ecologia que anestesia o corpo através de sistemas de simulação e estetização de Sociedade do Espetáculo, e podemos mesmo dizer que suas reflexões andam de par em par com as reflexões acerca da sociedade mundial de controle e o Império. Os corpos estão anestesiados em um constante produzir de rituais espetaculares e vazios, sociedade e política simuladas num decalque vazio do mundo.

Se o capitalismo imperial produz corpos modulados em um grande fluxo de inteligência massiva e sobrecodificada, em que medida e com quais estratégias as práticas militantes contra-hegemônicas conseguem ou conseguirão dar conta de uma subversão desta realidade? Pretende-se pensar a militância contra-hegemônica acreditando na possibilidade de um agenciamento voluntarioso das forças de resistência no sentido de diferir desta ecologia nefasta a partir de uma ativação do corpo político, aquele corpo cuja potência é capaz de agenciar outras formas de vida.

Como constatou Gilles Deleuze (1992), o novo arranjo das forças na forma de uma sociedade mundial de controle – o Império sem exterioridades, a sociedade do espetáculo – precipita nos mais diversos estratos da vida em sociedade severas e reiteradas crises generalizadas; é também a aptidão da militância que está em jogo, é também a militância como modo de vida que apresenta-se como dispositivo em crise.

Frente à crise, faz-se necessário problematizar a militância contra-hegemônica na tentativa de compor novas armas para um combate no presente. Frente à crise, faz-se necessário traçar cartografias das estratégias biopolíticas que emergem tanto de uma ecologia capitalista quanto de uma ecologia comunista, problematizando a relação que cada uma estabeleceu com as categorias da vida. Frente à crise, resgatar uma trajetória militante em contato não somente com as querelas do capital, mas também com outras estratégias capitalísticas de investimento sobre a vida. Frente à crise, tracejar caminhos que podem contribuir na formulação de uma pragmática militante que consiga privilegiar, escutar e dar vazão para o que efetivamente pode o corpo, dar vazão a uma ecologia de resistência ativa em um corpo perceptivo que busque, acima de tudo, afirmar material e imanentemente o ser como potência e o real como processo.

Nenhum comentário: