6.8.07

carograma#64 - Soma

Acredito que ninguém chega à Soma por acaso, mesmo sabendo que os caminhos que levam a este encontro não estão sempre bem desenhados; quero dizer que mesmo que não haja algo a pré-determinar este encontro ninguém chega e permanece numa prática como a Soma sem antes a ter desejado de alguma maneira. O acaso pode atuar, sim, mas em circunstâncias secundárias: uma discussão oportuna no momento oportuno, um bate-papo com conhecidos numa mesa de bar, um livro cujo título nos prendeu a atenção nas prateleiras de uma livraria, um cartaz que vemos ou uma filipeta que recebemos durante uma caminhada despretensiosa e rotineira; o acaso como aquela sensação de que estávamos no local certo, na certa certa. Mas não é disso que estou falando: mesmo que a Soma toque em você pela via de uma discussão, de um bate-papo, de um livro ou de uma filipeta, por indicação de algum amigo ou de algum conhecido, ainda será necessário deixar-se tocar por ela, e até tê-la procurado. Nisso reside o ato de desejá-la: só encontramos a Soma quando, de alguma forma, já queríamos atender aos seus manifestos. Roberto Freire instigou e continuamos a instigar: “Sem tesão não há solução! Não há utopia sem paixão! A rebeldia não vale nada sem tradução em felicidade genuína! O prazer é par da insubmissão! Ame e dê vexame! Nunca deseje a sua própria repressão!” Neste ponto, quando tratamos deste tipo de manifestos, não há acasos: ou já houve um desejo de atendê-los ou então tudo passará ao largo ainda outra vez. É preciso já haver um pouco do protomutante[1] em você, é preciso já haver pelo menos um pouco do anárquico em você. Os que ainda desejam a sua própria repressão, aqueles que vêem nos modos de vida burgueses o seu princípio de conforto e redenção, eles dificilmente virão ou ficarão entre nós: esses atendem a outros manifestos.

As histórias e motivos, porém, serão tão diversas quanto aqueles que as contam, isso porque muitos caminhos levam aos desejos de liberdade e cada caminho, desde que tenha este norte, ele já é um caminho de originalidade. Daqui em diante, cabe falar da formação em Soma e tentar explicá-la. Optei por falar da minha trajetória pessoal no contato com a Soma através de algumas cenas do passado; são cenas que dizem respeito ao surgimento deste anárquico em mim, ao porção que trouxe-me aqui, somaterapeuta em formação. Para utilizar uma expressão do escritor Julio Cortázar, é como duas pessoas que caminhavam pela cidade sem se procurar, mas sabendo que cedo ou tarde iriam encontrar-se. A formação em Soma: algo como uma longa preparação numa amizade à anarquista relativamente anterior e certamente exterior a qualquer roteiro ou procedimento formal.

Porto Alegre, 1998.

Meu primeiro contato com a Soma foi no ano de 1998, durante um encontro de estudantes de psicologia. Em janeiro de 1998, participava do conselho regional de estudantes de psicologia da região sul do Brasil, experiência autogestionária de estudantes de psicologia do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e organizamos um grande encontro de estudantes no campus da PUC de Porto Alegre. O encontro tinha um cronograma fixo de atividades, discussões relativas aos rumos da formação universitária em psicologia e da profissão de psicólogo no Brasil, mote principal do movimento estudantil, mas era aberto à inscrição de diferentes oficinas. Por sugestão e convite de um colega do conselho, estudante de uma das faculdades da região metropolitana de Porto Alegre, aconteceu uma oficina de Soma com Jorge Goia. Lembro de Goia chegando na secretaria do encontro e pedindo informações sobre a sala da oficina que ele iria ministrar, a oficina de Soma. Lembro também da roda de capoeira que foi realizada num dos pátios do antigo prédio 17, suas floreiras e colunas, e de como gostei da beleza e da picardia daquela brincadeira. Não lembro de ter prestado atenção à capoeira angola antes disso, mesmo que já tivesse flertado com a capoeira regional. Aquela roda fazia parte da programação da oficina de Soma. No início da faculdade – entrara em 1995 –, ainda envolto num tipo de psicologia que preocupava-se com o que chamávamos de “personalidade” – conceito que amputa ou secundariza o corpo das concepções sobre o comportamento –, envolvido com questões políticas mas ainda dentro de um sistema de reivindicações estudantis e institucionais mais ou menos abrangentes, e com muito trabalho a realizar para que o encontro desse certo, digo que nem cogitei de fazer a tal oficina sobre uma certa terapia Soma, vá lá anarquista. Posso dizer que aqui a Soma me tocou pela primeira vez, mas que ainda não foi aqui que me encontrei com ela. Durante o resto da faculdade, até meados de 2000, a Soma passou ao largo: fortemente envolvido com a minha formação, deixava pouco espaço ao que lhe era exterior. Até tornar-me “psicólogo”, pouco sabia da Soma: tanto as teorias que fornecem o alicerce conceitual da Soma, pesquisa primordial de Roberto Freire, quanto as novas teorias que o Brancaleone vem pesquisando[2], elas são completamente alijadas da formação universitária atual, e não só na área das psicologias. Isso não só evidencia uma dificuldade das estruturas institucionais das universidades ao dialogar com teorias e práticas radicais, mas evidencia também que a Soma constitui para si um domínio que não é de nenhuma das áreas do saber universitário, que a Soma lhe é propriamente uma anomalia, um domínio anti-acadêmico. Enquanto estivermos preocupados e envolvidos, assim como eu estava, com uma “psicologia” ou com qualquer outro destes domínios, nunca chegaremos à somatologia de Roberto Freire: a alma é o corpo, o corpo é a casa.

Rio de Janeiro, 2001.

Minha faculdade, na época, era reconhecidamente um dos redutos da psicanálise freudiana no Brasil, e essa era de longe a teoria mais estudada e discutida, defendida então como a base na formação de qualquer psicólogo. Os lindos domínios do inconsciente não sobreviveram à carga maçante de psicanálise ortodoxa que recebi em tais condições, isso porque descobri outros campos de conceitos mais interessantes e também porque as práticas psicológicas ditas clínicas ou terapêuticas não me agradavam tanto no que eu considerava sua neutralidade apolítica. Já formado, três anos de vida depois daquele encontro de estudantes, eu era um psicólogo interessado nas questões e nas aplicações comunitárias e institucionais da minha psicologia. Gostava do trabalho em comunidades e instituições porque permitia intervenções interessadas e até militantes contra toda a neutralidade da psicologia clínica em geral. Engajado em entidades diversas, tendo passado do movimento estudantil ao meu sindicato e ainda circulando pelos corredores da universidade, eu mantinha uma boa relação com o ambiente universitário da psicologia e fui convidado para vir ao Rio de Janeiro para um outro encontro de estudantes, desta vez do amplo movimento nacional: uma bienal da cultura e arte da UNE. Uma das universidades da região metropolitana de Porto Alegre conseguiu transporte para todos e, como todos os interessados numa bienal da UNE já não eram muitos, restaram alguns lugares de bandeja. Abertamente desinteressado pela política institucional e partidária dos organizadores do evento, coisa que eu já abominava desde os tempos de faculdade, entrei nesta boquinha. O encontro forneceria alojamento gratuito, alimentação barata, tudo prometia boas festas, o convite veio de uma amiga querida e uma semana de Rio de Janeiro ainda não me parece nada mal. Na primavera de 2001, embarquei para minha segunda aventura na cidade maravilhosa. A amiga que fez o convite havia concluído há pouco tempo um grupo de Soma em Porto Alegre, com Jorge Goia – aquele mesmo de 1998 –. Junto com ela, outras pessoas deste mesmo grupo entraram na tal viagem e, entre os papos que rechearam o trajeto de dia inteiro, o turismo, as histórias, a psicologia, a política e a Soma. Todos concordaram que eu deveria conhecer o processo, intimando-me a participar de uma oficina que aconteceria no evento, essa com o somaterapeuta João da Mata. E foi o que aconteceu: fomos quase todos à tal oficina. Numa sala de aula do grande prédio da UERJ, fizemos a vivência conhecida como “tronco”[3]. A vivência causa uma mobilização corporal intensa numa sensação bastante inédita, pelo menos para mim e até então. Depois da vivência, conversamos sobre a Soma, sobre seu funcionamento, sobre alguns de seus princípios e sobre sua atualidade. Deixei meu e-mail numa folha para contatos posteriores, voltei a Porto Alegre realmente intrigado com aquela outra possibilidade de fazer uma espécie de clínica e tratei de tudo isso sentado inquieto na minha terapia tradicional.

Erechim, 2002.

Logo depois de voltar do Rio de Janeiro, em meados de 2001, fui trabalhar com educação popular no interior do Rio Grande do Sul, cidade de Erechim. A maior parte dos movimentos sociais rurais é muito forte na região, e alguns urbanos também; o trabalho consistiria em assessorar estes movimentos no que fosse necessário. Aceitei prontamente o convite, que veio de um antigo amigo que me flagrou sobrevivendo às custas da venda de revistas durante o segundo Fórum Social Mundial, e enfim transportei toda minha vida para lá, levando também o afã de enfim fazer da política uma profissão de vida. Trabalhávamos exclusivamente para estas entidades esquerdistas, de municípios a cooperativas, passando por movimentos sociais e sindicatos, planejando e executando desde programas de educação até a invasão de bancos e prédios públicos, o trancamento de ruas, a colocação estratégica de carros de som em praça pública etc. Marchávamos ativamente no rumo do que era a nossa espécie de revolução. Foram bons tempos de cumplicidade revolucionária, a despeito das discordâncias que viriam com o aprofundamento cotidiano das relações. Creio que neste momento eu tenha entendido a função do amor como dinamizador da política, isso porque amava aquele sentido revolucionário de uma forma que me dava energias suficientes para correr de sol a sol. Nesta época, também realizava minha pesquisa de mestrado sobre novos movimentos sociais e minhas leituras levavam-me cada vez mais à formulação de uma política dos corpos – principalmente através de Foucault, Deleuze e Guattari[4] – e também às discussões sobre a história e a atualidade do movimento anarquista. A entrada em cena do corpo e do anarquismo fez com que os escritos de Roberto Freire aparecessem inevitavelmente e em ótima hora: ajudaram-me não somente a construir uma outra concepção de política, isso porque em seus escritos podemos perceber a formulação de um anarquismo somático bastante original, mas ajudaram-me também a revelar ou a reinterpretar diversos pontos importantes do meu viver cotidiano. Dois anos depois, ainda em Erechim, já havia algo diferente no ar: apesar daquela cumplicidade revolucionária, quando as relações evidenciavam que não basta estar além da margem esquerda e que é preciso uma política do cotidiano, tudo ficava muito falho. A decorrência disso era o apodrecimento das relações, a proliferação de uma mágoa surda entre pessoas. A cada nova jogatina de poder, o exercício da política era transformado numa política de guerra onde os próprios cúmplices, de amigos, viram potenciais inimigos; onde os adversários não são nada mais do que gente que é preciso bater batalha após batalha. As armas da retórica... o conchavo que sempre precede o grande teatro das assembléias públicas. Um ambiente péssimo. Deitado na minha cama numa noite fria, um dia calhou-me de retomar Utopia e Paixão, que havia lido com descuido meses antes. Ao final das 119 páginas do livro, sabia que precisava sair daquele ambiente e que aquela política não correspondia à minha paixão. Se a oficina de 2001 fora uma aula sobre terapias e um chacoalhão na minha porção psicólogo, Utopia e Paixão[5] foi um cachoalhão na minha porção militante. Larguei tudo e voltei a tentar minha vida em Porto Alegre, agora decidido a procurar mais informações sobre Roberto Freire e a Soma.

Ibiraquera, 2004.

Cheguei de volta em Porto Alegre no início de 2003. Procurando informações sobre a Soma, descobri que haveria um grupo novo em Porto Alegre, em breve. O grupo era justamente com aquele mesmo Jorge Goia. Mandei uma mensagem para ele e nos encontramos para um bate-papo na lancheria do bairro Bom Fim. Contrariando qualquer expectativa de uma entrevista formal, conversamos de forma amigável, e ele falava com especial entusiasmo, parecia querer explicar-me tudo sobre a Soma, o que era e como acontecia, como seria, sua história e todo o resto. Eu ouvia e só tinha vontade de dizer pra ele que já conhecia um pouco daquilo tudo, que tinha quase a certeza de que estava a fim de participar de um grupo e achava que aquela era a hora. Queria dizer para ele que eu não estava ali por acaso. A oficina aconteceu logo depois de nosso bate-papo e só confirmou meu interesse. Daí em diante, formamos um grupo e começamos a Soma. Ano e pouco depois, eu estava sentado na sala de uma casa simples na praia de Ibiraquera, no lindo litoral de Santa Catarina; a casa pertencia à nossa amiga Lu, colega de grupo, e ela própria estava sentada à minha frente junto com Goia e as demais pessoas que haviam permanecido até o final do grupo: Belleza, Dette, Dieguito, Marcelão, Marco Pólo e Quel. Estávamos fazendo a minha “cadeira quente”[6], processo também descrito na primeira parte deste livro. Todo aquele último ano e pouco passou novamente por meu corpo no tempo que estivemos juntos ali, a experiência de uma amizade à anarquista com aquelas pessoas, tudo o que Goia havia nos dito sobre um cotidiano libertário, tudo o que aprendi ouvindo e falando, o que pensei e repensei, as novas certezas, as antigas dúvidas, o que eu fiz e procastinei, medos e anseios, tesões, projetos. Era um ano e pouco de muita diferença, como se algo houvesse acelerado a minha experiência. O que se passara? Depois do grupo desfeito, eu já trabalhava como psicoterapeuta numa clínica pública repleta de psicanalistas lacanianos, também como pesquisador convidado no pós-graduação da UFRGS e como professor em disciplinas que considerava interessantes numa faculdade particular do interior, cidade de Santo Ângelo. Falou-se várias vezes em formação durante o grupo de Soma e aquilo sempre prendeu a minha atenção. Guardei um silêncio na época necessário e, seis meses depois do final do grupo, escrevi ao Goia perguntando sobre formação e falando de meu desejo de fazê-la, se possível. Neste momento, além das questões de ordem terapêutica e política que tanto Roberto Freire quanto o Brancaleone tinham proposto, pontos de virada em diferentes momentos da minha vida, os resultados da Soma no meu cotidiano qualificavam este desejo de formação: queria continuar a sentir estes efeitos, e também ter a capacidade de estender a prática deste laboratório. A resposta de Goia foi um convite. Conversei com João, Vera e Marcelo algumas vezes, conheci Roberto e, depois de uma boa correria entre os avisos prévios e a venda do que eu tinha, mudei para o Rio de Janeiro. Era 18 de janeiro de 2005: começava formalmente a minha formação em Soma.

Rio de Janeiro, 2007.

Se estas cenas pessoais procuram fornecer uma metáfora possível para a chegada da Soma na vida de alguém, elas não são totalmente fiéis ao que poderíamos considerar como condições gerais de uma formação em Soma: em primeiro lugar, não é preciso ter formação em psicologia ou em qualquer outra área previamente ligada às terapias, tampouco é necessária uma formação propriamente universitária prévia. Calhou-me como psicólogo, sim; tão brutalmente quanto não por acaso. A formação em Soma não é uma faculdade, tampouco um curso de especialização ou pós-graduação; ela é uma formação independente e autônoma em relação a qualquer outra estrutura ou programa institucional que busque marcar hierarquias ou conferir graus ou titulações de saber às pessoas. Em segundo lugar, mesmo que eu tenha optado por vir morar no Rio de Janeiro, cidade que atualmente concentra o maior número de membros do Brancaleone e, por isso, serve como ponto de referência para a Soma, esta também não é uma condição geral da formação: podemos dizer que ela é uma formação desinstitucionalizada e descentralizada.

Certamente a formação tem um eixo que poderíamos chamar de “técnico”, onde o somaterapeuta em formação precisará pesquisar, aprender e recriar as habilidades necessárias para facilitar um grupo de Soma: deverá conhecer as pesquisas teóricas de Roberto Freire; além disso, deverá estar atento aos diálogos destas pesquisas teóricas primordiais com autores e condições contemporâneas; deverá também situar a Soma dentro de uma discussão mais geral sobre as terapias, e assim compreender como neste ponto ela desempenha um papel histórico e político singular, e optar por exercê-lo; deverá também saber situá-la na discussão mais geral sobre políticas, e então compreender como ela dialoga com os modos de vida militantes propondo uma política do cotidiano; deve conhecer tanto o conjunto das vivências que a Soma utiliza quanto alguns cuidados para sua aplicação num grupo; deve conhecer os princípios da autogestão e procurar desenvolver a sensibilidade no rumo do autogoverno de cada qual por si; deverá ser jogador de capoeira angola e criar uma maneira de ensiná-la etc. A observação atenta aos acontecimentos sociais e políticos da atualidade, através de uma análise crítica da leitura de jornais e noticiários, tem uma importância significativa para a formação. Afirmo isso porque, para ser um bom somaterapeuta, mais do que dominar sua técnica, é preciso estar atento aos acontecimentos e transformações pelas quais a sociedade passa, sondando sua relação direta como o modo de vida dos indivíduos. Esses seriam alguns pontos, com certeza haverá outros. No cotidiano de uma formação em Soma, porém, esta confluência de pontos ocorre através de projetos comuns de pensamento e prática no cotidiano do Brancaleone, tanto formando pontos de unidade quanto abrindo novas vertentes de reflexão e ação: a Soma é uma obra sempre aberta ao presente, cotidianamente recriada de acordo com as condições sociais nas quais está inscrita.

Não temos programas, aulas ou seminários, mesmo que haja uma bibliografia de consensos e muita conversa; não temos roteiros, caminhos prontos ou horizontes a atingir, mesmo que haja um sentido comum e compartilhado; não há um prédio com uma sala, mesa e cadeira e um quadro negro. Não há certificado a não ser a certificação da cumpliciddade. O processo de formação em Soma é um projeto de convivência cotidiana, de troca de experiências. Um somaterapeuta em formação deve participar de tantos grupos de Soma quanto forem necessários para que ele não só vivencie como incorpore o conjunto de experiências que esta passagem proporciona. Há tanto diálogo quanto a necessidade de iniciativa própria: neste caminho, perceber suas próprias lacunas e então preenchê-las num processo que vai da auto-educação ao diálogo é fundamental. Um desejo pessoal e uma busca dialogada. Como é típico das prásticas de pedagogia libertária, a formação em Soma acontece pela via das trocas horizontais, onde quem deseja o conhecimento deve seguir pelos caminhos que levam à auto-educação dialogada.

Podemos dizer que a única condição geral para que alguém formalize o início de uma formação em Soma é esta: que tenha participado de um grupo de Soma e que queira continuar participando de grupos de Soma, aprofundando então a relação que mantém com esta prática, exatamente o que lhe possibilitará facilitar o laboratório a outras pessoas tempos depois, somaterapeuta. Primeiro como cliente, depois como assistente, depois como co-terapeuta para, enfim, após uma quantidade de grupos que varia conforme o envolvimento ou o desencadear destes encontros que vão surgindo no cotidiano da Soma e conforme as mudanças que este trajeto traz ao cotidiano, concluir uma formação. A formação consiste neste envolvimento progressivo, auto-educação compartilhada que nos leva do envolvimento como cliente ao envolvimento como somaterapeuta no processo de um grupo, de relativos estrangeiros a membros de um coletivo que desenvolve uma prática comum, com sentidos compartilhados.

Poderia seguir listando habilidades e desafios “técnicos” necessários a uma formação em Soma, e nisso mostrar a complexidade que é formar-se numa prática que caminha radicalmente entre os domínios habituais: será muito mais fácil fazer uma faculdade de psicologia ou um curso de pós-graduação em alguma modalidade tradicional de terapia do que fazer uma formação em Soma, isso porque estes domínios acadêmicos ou formais não propõem articulações que misturam ciências, políticas e artes num complexo e radical hibridismo, e também porque seguem um caminho de tutelas em sua pedagogia, onde o racionalismo burocrático suplanta toda forma de aprendizado experiencial. Mas estes ainda seriam desafios de ordem “técnica”, e numa formação em Soma os desafios desta ordem não são os principais.

Implicar-se como somaterapeuta é radicalmente diferente de implicar-se como psicoterapeuta, e aqui há o que penso ser o desafio mais fundamental na formação. Roberto Freire estava certo quando chamava a Soma de antipsicoterapia[7]. Em primeiro lugar, é preciso entender que a mais terapêutica das relações é propriamente a amizade, que uma terapia consiste menos de técnica e mais de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas. Elegemos a amizade à anarquista como modalidade terapêutica, e este pode ser o principal motivo de chamarmos a Soma de uma terapia anarquista. Falar de formação em Soma, então, é falar da vivência desta amizade à anarquista nos grupos e no coletivo, o que está completamente fora de qualquer cronograma ou habilidade técnica, e que só requer encontros e uma longa preparação. De nada adiantará o domínio da técnica e da teoria se o somaterapeuta negligenciar que a capacidade para um encontro terapêutico é principalmente produzir mais vida de lado a lado. A vivência constantemente renovada em grupos de Soma, assim como a participação na dinâmica autogestionária do Brancaleone, esses são elementos que buscam trazer esta amizade à tona, fazer do formando não só um técnico em terapias, mas um amigo à anarquista. Em segundo lugar, se o trabalho de psicoterapeuta envolve certo comedimento, o somaterapeuta como antipsicoterapeuta será um entusiasta, um instigador do movimento e da criação. A própria amizade não pode ser definida sem seu caráter revolucionário, por ser aquele encontro que potencializa alternativas, amplifica afetos, liberta rebeldias, agencia estratégias. Toda a formação técnica só pode ser vista à luz desta amizade e deste entusiasmo tanto da parte daquele que está em formação quanto dos somaterapeutas mais antigos e participantes dos grupos.

No cotidiano da formação, então, é preciso articular muito mais do que livros, teorias e técnicas; é preciso mais do que estar sentado em frente a um quadro negro, absorvendo o que é dito por aqueles que detém um determinado saber: é preciso mais do que querer um diploma... é preciso articular um corpo que literalmente saiba movimentar-se no contexto da Soma: movimentar-se entre as teorias que lhe fornecem base, conhecer biologicamente a riqueza das experiências que as vivências proporcionam, viver os sentidos da autogestão e da amizade como rumos necessários a uma política do cotidiano, ter a liberdade como norte e entusiasmar-se com ela a cada nova possibilidade de vida, mover-se pela luta-dança da capoeira angola, deixar-se vadiar, tocar e cantar... Podemos dizer que a formação consiste no progressivo envolvimento com estes contextos todos, e que antes de um processo propriamente pedagógico, é uma longa preparação. Ninguém aprende o que é ser uma amigo à anarquista senão no florescimento e na vivência das amizades à anarquista.



[1] O termo protomutante foi cunhado por Thomas Hanna e posteriormente atualizado por Roberto Freire na caracterização do personagem Coiote, no romance homônimo. Ver: Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972. & Roberto Freire. Coiote. São Paulo, Sol e Chuva, 1997.

[2] Ver O Tesão Pela Vida vol.1.

[3] Descrita no capítulo sobre maratonas de divulgação, na primeira parte deste livro.

[4] Neste ponto, indicaria especialmente as discussões de Michel Foucault sobre os “corpos dóceis” e as discussões de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre os “corpos-sem-órgãos”. Ver: Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrópolis, Editora Vozes, 2002 (terceira parte) & Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996 (primeiro capítulo).

[5] Ver: Roberto Freire e Fausto Brito. Utopia e Paixão – A política do cotidiano. São Paulo, Editora Trigrama, 2001.

[6] Ver capítulo sobre cadeira quente na Soma, na primeira parte deste livro.

[7] Ver: Roberto Freire e Coletivo Brancaleone. O Tesão pela Vida Vol.1. São Paulo, Editora Francis, 2006 (primeiro capítulo).

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