3. Pela invenção de novos manifestos:
Ombro a ombro entre toda sorte de excessivos, caluniadores, cínicos e irônicos, entre devassos e loucos, toda sorte de gente bandida e transtornada, não raro trazendo em si um pouco de cada um deles, emergirá o fabuloso hedonista, aquele que entrará na história da filosofia como quem entra no hipócrita jogo das verdades com um martelo. Quando conseguir a abolição da ascese filosófica sisuda a alimentar a economia dos maus hábitos, então poderá angariar especialmente as atitudes oblíquas e os exercícios prazerosos, a alegria da convivência e a espessura dos inebriantes encontros; poderá angariar alguma filosofia e algumas marteladas.
O crítico se colocará com distância; e mesmo alguns genealogistas ou cartógrafos o farão. A escrita é tomada como o último requisito da ascese filosófica, servindo de principal operador nas suas principais cerimônias; ela merece distância. As cerimônias onde o escritor cumpre o dever de tornar público seu argumento são ocasiões no mais das vezes oficiais, embora às vezes também oficiosas; são muitas vezes pomposas, não raro acontecem em salas fechadas no interior das corporações régias e burguesas. Nas cerimônias, é necessário apresentar a conclusão de uma trajetória filosófica segura, assim como a brecha evidente que cada qual escolheu para atracar; deseja-se escrutinar as habilidades do escritor neste movimento de ancoragem, para então sondar com qual grau de segurança ele será capaz de operar em terra firme, já tendo dominado determinado espectro de palavras de ordem[i].
Ao chegar no final de uma ascese deste tipo, de acordo com o que se espera de uma escrita como enlace de uma trajetória, é requerido um trabalho de revisão bibliográfica onde se encontre uma articulação dos conceitos e teorias previamente dados e avalizados, escolhidos dentro do complexo leque das interpretações existentes; e delineamentos tanto de uma epistemologia que resguarde a veracidade de seu trabalho quanto de uma metodologia que contemple uma boa maneira de conhecer os alicerces de suas afirmações. Um terceiro ponto e um quarto ponto ainda são solicitados: sobre esta base que se pretende sólida, que o asceta disponha com clareza as informações que juntou durante sua trajetória e forneça uma articulação final, interpretação que se pretende no mínimo válida e no limite verdadeira. Entre estes quatro pontos fundamentais, é requerida uma coerência que ligue e faça operar conjuntamente conceitos, pressupostos epistemológicos, estratégias metodológicas e conclusões.
Muito bem que assim o seja.
A escrita hedonista, desinteressada do tédio das cerimônias oficiais, é antes um golpe de martelo no disparate[ii], entrada entusiástica no jogo das verdades. O asceta termina sempre numa argumentação inteligível e bem concatenada, a língua selvagem domada na construção de um argumento entre quatro paredes. Já o hedonista reencontra-se sempre sobre os abismos de si e do mundo, nos limites de qualquer visibilidade ou enunciação, é equilibrista entre as fronteiras, malabarista dos limites; deambula entre abismos como quem dança em um campo minado. O hedonista filosofa em campo aberto, “ele permanece no instante, para desempenhar alguma coisa que não pára de se adiantar e de se atrasar, de esperar e de relembrar. [...] Esta efetuação cósmica, física, ele a duplica com outra, à sua maneira, singularmente superficial, tanto mais nítida, cortante e pura por isso mesmo, que vem delimitar a primeira, dela libera uma linha abstrata e não guarda do acontecimento senão o contorno ou o esplendor: tornar-se o comediante de seus próprios acontecimentos, contra-efetuação”[iii].
Se suas imagens não revelam o foco de lindas paisagens vistas do topo de uma ravina, tampouco revelam os positivos de uma trajetória ascética, é porque revelam quedas e transmutações, imagens em movimento. O hedonista reencontra-se sobre os abismos porque a escrita só lhe interessa enquanto cartografia das quedas, autobiografia do tempo em seus instantes sublimes, cenários vividos na urgência das leis da gravitação. Em seus manuscritos ao vento, a última página solta de Gilles Deleuze não trataria dos grandes conjuntos do marxismo; não fosse uma Terra tão pouco continente com seu sufoco, nosso intercessor teria ainda respirado ar fresco uma última vez, e lançado uma derradeira palavra poética sobre o que passa nos momentos de um homem em derradeiro vôo, religando céu e terra no corpo, o derradeiro instante de arrebatamento onde mata-se toda a morte. Um corpo em convulsão na esquina de inflexão da história, inteiramente marcado por sua presença, inteiramente arruinado ou doido por ela[iv].
Não haverá escrita possível entre a estética das cerimônias e seus manuais de redação; esta claustrofobia deve ter fim. O hedonista rasga o sentido da norma, rouba, repele e recusa seus ardis; abusa da primeira pessoa e não tem medo nem das palavras que se repetem, tampouco de sonoridades que confundem. Escreve um texto para ser lido em voz alta entre amigos[v], um epitáfio fabuloso que investirá de vontade o carnaval de seus funerais. A escrita hedonista não poupará a expressão, mas evitará os chavões; de quando em vez, fabricará parágrafos de uma só frase e cometerá sua repetição; inventará palavras e lançará mão de subtítulos que ajudam na passagem direta ao ato. E sempre dobrará a surpresa de uma esquina antes de qualquer novo argumento.
O hedonista escreverá sentado na chuva e não explicará seus porquês; será largado e irresponsável sobre a folha que espia. Acreditará nas onomatopéias e descobrirá as mais humanas, destacando seus gritos e grunhidos urgentes sob o rumor infernal da história. Entregará sua escrita à gravitação, mas terá imprimido suas marcas somente em papel laminado, com claras instruções para que cada página seja lida ao grande sol de meio-dia. Será de sua preferência apagar os rastros enquanto viaja no tempo, permanecendo solto do espaço, em trabalho clandestino, porém meticuloso.
A escrita hedonista é dada à fabulação: a fabulação como exercício dotado de virtude rebelde, quando tanto mais fabulosos forem os instantes de uma vida única, mais feroz será sua filosofia crítica. A seriedade e a preocupação com as últimas conseqüências da verdade serão motivo de seu escárnio; “a espelunca, o cabaré, a taberna se alçam à dignidade de lugares filosóficos. Submersos em montes de perdizes assadas, evoluindo entre mulheres afáveis, grandes consumidores de vinho fresco, os eruditos libertinos se encontram, escondidos do poder que persegue os marginais, para rir, beber, comer, traquinar, mas também escrever versos subversivos, trocar idéias progressistas, ironizar o velho mundo que se trata de destruir: [...] os libertinos optam pelo efeito desconstrutor do humor, do cinismo e de todas as versões do recurso à caçoada.”[vi]
É preciso ter muito cuidado: o poder régio gosta dos exercícios fabulosos, mesmo que somente num sentido reacionário; engendrado de diferentes maneiras desde a Idade Média até a pós-modernidade, o poder régio é interessado nas fábulas como instrumento de fixação das façanhas e das peripécias ostentosas de suas figuras emblemáticas, na fixação de suas caricaturas monstruosas ou no fetichismo de uma intimidade sórdida escondida nas sombras do cotidiano. As fábulas do poder régio sustentam luxos e índoles autoritárias, prazeres vis. Mesmo que seja preciso atentar para os interesses, não caberá debruçar-se novamente sobre o quê Michel Foucault já debruçou-se[vii].
Interessa ao hedonista especialmente o sentido psicopatológico da fabulação; o exercício psicopatológico de falsificação importará mais do que a significância ou a fixação de protagonistas numa grande estória qualquer. A comédia, a charada e o chiste interessam como arranhões anárquicos na história, atitudes deliberadas de escárnio ao contar estórias à tradicional, ao desejar a história e a filosofia à tradicional como desejam aqueles que arquitetam a cirurgia porcina de Abelardo[viii].
Assim como os comediantes de Henri Bergson[ix], o hedonista revelará em seus golpes a comicidade dos artefatos do presente, indicando os limites das engrenagens ou os automatismos em sua dinâmica, suas categorias de semelhança e suas monstruosidades; revelará um cotidiano fabuloso e risível ali onde as derivadas mecânicas tentavam capturar toda a história em seu momento de inflexão, acontecimento.
[extrato de artigo inédito, 2005.]
[i] Gilles Deleuze & Félix Guattari. ‘20 de novembro de 1923 – Postulados de lingüística’ in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.2. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995. tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. p.11-59.
[ii] Michel Foucault. ‘Nietzsche, a genealogia e a história’ in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1999. tradução Roberto Machado. p.18.
[iii] Gilles Deleuze. ‘Viségima primeira série: Do Acontecimento’ in Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 2003. tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. p.155.
[iv] Michel Foucault, idem. p.22.
[v] Michel Onfray. ‘Patética: geografia dos círculos éticos’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.141-186.
[vi] Michel Onfray. ‘Virtudes’. in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. idem. p.261.
[vii] Michel Foucault. ‘Aula de 28 de janeiro de 1976’ in Em Defesa da Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Maria Ermantina Galvão. p.75-80
[viii] Michel Onfray. idem. p.229-233.
[ix] Henri Bergson. O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2004. tradução Ivone Castilho Benedetti.