16.7.06

cartograma #10 - hibridismo

Não é o caso de retomar o mecânico de Descartes apresentado por Shultz e Shultz (2005), a menos que queiramos falar do contraponto à imaterialidade da verdade; tampouco relembrar La Mettrie, como fez Rouanet (2003); não é o caso de pensar no sopro divino sobre as engrenagens, tampouco na figura moderna do homem-máquina. No que diz respeito a uma problematização contemporânea acerca do corpo, Gilles Deleuze e Félix Guattari (s.d., 1996) resgatam o corpo-sem-órgãos de Antonin Artaud para colocá-lo na forma de uma máquina desejante agenciada nas condições materiais, intensivas e lingüísticas de um coletivo; corpo-sem-órgãos como o processo de produção cotidiana de um corpo articulado material, afetiva e lingüisticamente num modo de vida específico, formando jeitos de ser e viver em co-extensão com o ambiente onde está inscrito.

Interessados que estavam na constituição cotidiana da experiência coletiva, nossos intercessores franceses estariam hoje perplexos com as transposições de nível que borram fronteiras entre humanos e não-humanos. Aparentemente livres das dicotomias entre indivíduo e sociedade, já aceitávamos que as dimensões afetivas e lingüísticas são produzidas coletivamente. De agora em diante, borrados os limiares da dicotomia entre nossa natureza e nossa cultura, a biotecnologia nos fará pensar sobre como a natureza de nossa própria carne também pode ser produzida por aquilo que é a cultura de nossa carne – ficção científica tornada realidade por conta dos avanços mais recentes da tecnociência.

A emergência da biotecnologia borra as fronteiras orgânicas que julgávamos existir entre nosso dentro e nosso fora, as fronteiras entre fisiologia, neurologia, informática e elétrica. Após a emergência do ciborgue (Kunzru, 2000) e do homem pós-orgânico (Sibilia, 2003), o corpo-sem-órgãos não poderá ser somente figura de inspiração poética, marcando o eterno retorno de devires imateriais. O avanço das biotecnologias dá sinais de uma evolução onde o funcionamento dos órgãos de um corpo, cada vez mais, pode ser mediado ou mesmo produzido em contato com aquilo que considerávamos um espaço de exterioridade ao organismo.

Avanços na área da pesquisa em saúde desenvolvem sistemas computacionais que captam e armazenam padrões de impulsos nervosos e/ou musculares na forma de informação digital; a partir da decodificação e análise destes bancos de dados, são desenvolvidos novos suportes tecnológicos que possibilitam a interação entre a informática e o corpo. Os impulsos nervosos e/ou musculares, decodificados e analisados por uma base computacional, permitem que estes novos suportes tecnológicos – conectados ao organismo humano – simulem ou recriem desde sensações até movimentos corporais (Sibilia, 2004).

A informática corporal já desenvolveu novos biochips ou wetchips no cruzamento entre circuitos eletrônicos e tecidos vivos, construindo um chip de hardware lógico e software físico que inaugura uma profunda hibridização entre matérias orgânicas e inorgânicas num mesmo sistema funcional. Pesquisas com estes novos biochips procuram devolver a visão a cegos, tratar doenças como os males de Parkinson e Alzheimer e intervir em casos de distúrbios nervosos como a depressão e a síndrome do pânico (Sibilia, op.cit.).

Outro campo de avanços bastante promissor tem sido a engenharia corporal, onde cientistas e projetistas não medem esforços na construção de próteses biônicas. Recentemente, pesquisadores norte-americanos foram festejados pela criação da primeira mão artificial; sua estrutura funcional, articulando computadores, tendões, músculos, sistema nervoso e dedos protéticos através de um dispositivo que decodifica e emite sinais elétricos, já permitiu ao usuário desenvolver tarefas complexas como digitar o teclado de um computador (Sibilia, op.cit.). Já não parece distante o tempo onde imaginamos poder fabricar órgãos inteiros, assim como outras estruturas corporais, talvez produzir ossos, medulas, córneas e mesmo fluidos corporais. Não será uma questão de possibilidade, mas uma questão de tempo até que se chegue ao ponto ótimo de compatibilidade entre organismos vivos, projetos, substâncias químicas, impulsos elétricos e computadores. No ponto de compatibilidade total, o fogo em nossas mãos nos dará o poder de criar a própria vida, e a cibernética terá sido a mais fabulosa das ciências biônicas.

Utilizando uma terminologia usualmente aplicada às intervenções no hardware, haverá o upgrade corporal. Sua corrida revelará a redenção de muitos de nossos problemas demasiado humanos ou uma endocolonização nunca antes vivida pela nossa civilização, colonização através de todas as fronteiras. Perdidos entre alarmistas e entusiastas de nossa nova condição, mas não raro percebendo suas aglutinações nas diferentes instâncias de exercício do poder, não sabemos mais se resgatamos o além-do-homem nietzschiano ou a fábula do Prof. Frankenstein; sabemos que o primeiro não teve o verdadeiro sopro de eletricidade, e que, no segundo caso, não só a eletricidade conseguiu dar vida a seus pedaços de carne reciclados.

O hibridismo entre humanos e não-humanos pede às ciências humanas problemas por sua vez híbridos. Quando o campo nu da natureza passa a ser rasgado pelos tratores da cultura – e parece-nos cada vez mais possível e cotidiano pensar em navalhas na carne, se tomada desta ansiedade civilizatória –, a temática da produção e da reprodução tecnológica da vida deverá preocupar todas as ciências humanas. Doravante, ciências humanas só poderiam ser definidas como aquelas preocupadas com a nossa humanidade, e nisto terão que preocupar-se de nossa bioética, de nossa biopolítica e de nossa ecologia híbrida.

[extrato de artigo para coletânea do Museu da República, Rio de Janeiro, 2005.]

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