16.7.06

cartograma#11 - materialismo hedonista

1. Materialismo hedonista:

Michel Onfray, a propósito de seu materialismo, resgatou o hedonismo como virtude libertária; além disso, contribuiu para resgatar o cinismo e a ironia como exercícios filosóficos. Em seu A Arte de Ter Prazer, empreende uma arqueologia da filosofia mundana, revelando entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Raoul Vaneigem[i].

O crivo nietzschiano de seu projeto está preocupado com os interesses filosóficos oblíquos às corporações régias e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento de sua moral comportada. Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria hedonista revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade da filosofia sem seus cruzamentos com a insubmissão e o prazer, homens e mulheres para quem os instantes fugidios da sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime.

Trazer esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes mundanas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser carne maculada por nossa condição demasiado humana; os usos do corpo estão submetidos aos registros da negação, da sujeição e do silenciamento das paixões através de diferentes formas de transcendentalismo e idealismo; além disso, toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais. O busto de Platão sob um pedestal de mármore, logo na entrada do museu das virtudes filosóficas oficiais, justifica tanto o preço dos ingressos quanto indica o caminho de entrada e a proibição de visitas descalças; os diversos guias especializados que se distribuem a cada nova sala confirmam – em italiano, alemão ou francês – as mesmas regras.

Os hedonistas não apenas utilizam uma ferramenta marginal às ferramentas filosóficas oficiais; não raro, toda sua vida é dotada de uma densidade marginal. Os trajetos que nosso intercessor revela apresentam a possibilidade de uma filosofia produzida não somente por grandes ilustres, tampouco por veneráveis estudiosos; mas uma filosofia hedonista produzida por toda sorte de devassos. “Na galeria dos hedonistas, encontram-se, com efeito, exibicionistas, bêbados, pederastas, sodomitas, monges e monjas atéias, músicos vagabundos, médicos exilados, libertinos presos, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão ou se batem em duelo, travestis que impregnam o corpo de perfumes. [...] Eles elegeram o banquete ou o cabaré contra a Academia ou a Universidade, a prisão ou a fogueira contra a Instituição ou a prebenda. [...] A ética torna-se uma arte de viver no cotidiano, longe da ciência absconsa das codificações castradoras.”[ii]

O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, em nada hedonista se não trouxer momentos de rebeldia, transe e gozo. Na extensão do projeto de Michel Onfray, contribuindo na composição desta galeria marginal cujos trajetos ele incita a resgatar, podemos encontrar uma filosofia mundana nos corpos-sem-órgãos de Antonin Artaud[iii], nos protomutantes de Thomas Hanna[iv], nos somas de Roberto Freire[v] e nos piratas e poetas terroristas de Hakim Bey[vi]; tantos outros ajudam a formar um extensivo bando de hedonistas cuja experiência marginal, ligada ao temperamento rompante, investe cotidianamente a vida de uma força estética que articula sabedoria filosófica, potência política e gozo; articula saber, poder e prazer. O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana revelará aqueles que entraram descalços no museu das virtudes filosóficas oficiais, aqueles que percorreram suas salas não atrás das explicações de um guia treinado, mas de um exercício lúdico entre os tantos cruzamentos que este labirinto proporciona, para então rir e desencaminhar esta experiência de visitação, a despeito do busto de Platão.

Cada um a seu modo, ignorando os axiomas de rigor e os tratados da boa educação, os hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de instantes sublimes, onde a vida afirme sua potência no inusitado dos acontecimentos prazerosos; ele sobretudo deseja os acontecimentos prazerosos. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva do tempo, a fluidez das passagens, o hedonista não se contentará somente com desejar; mesmo que entenda a vida em sua infinita mutação e seu exercício cotidiano como constante aceleração, ele não abrirá mão de seus cristais de gozo, de suas experiências culminantes de autonomia temporária, bem como de todo o langor aí proporcionado. De outro modo, se a crítica deverá ser investida com uma índole de sacrifício, o bloqueio destas experiências culminantes, então o hedonista fará tudo menos uma crítica; ele será o filósofo da poética, do escárnio e da gargalhada entre o encadear dos instantes sublimes.

Esta perseverança ímpar no ser como busca dos instantes sublimes é seu ato de resistência ao interesse ascético, civilizatório; as infinitas folhas da enciclopédia civilizatória serão usadas da maneira mais inconseqüente, não raro servindo para limpar mãos e bocas sujas de fluidos e temperos no fragor das comemorações; o hedonista fará sempre um piquenique na sala dedicada à Descartes, estourará champagnes na sala dedicada à Kant e pichará mensagens anti-nazismo na sala dedicada a Heidegger. Uma arqueologia da filosofia mundana confunde-se com as estórias de arrebatamento que consegue suscitar, ali onde toda crítica vem numa nova sensação, numa nova posição radical; ali onde toda nova intuição servirá de nova charada às esfinges, propondo cenários que aparecem-lhes como irresponsáveis, egoístas ou mentirosos, delirantes ou obscenos. Propondo-lhe um corpo rebelde que nega toda forma de sacrifício para fazer de si mesmo uma obra de arte.

O hedonista não deverá somente contar ou descrever grandes cenários, senão tê-los vivido especificamente. Em seu cotidiano, deverá descrever as grandes estórias de suas errâncias, mas também experimentá-las contra todas as estórias de tédio e timidez; tomando o corpo e a vida como instrumentos da experimentação, o filósofo hedonista não deverá somente ler, refletir e escrever, mas também beber o quanto puder[vii].

O exercício deste tipo de filosofia normalmente é feito desde a condição de estrangeiro; não raro o hedonista emitiu desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de tutela. Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices[viii]. Mas o hedonista será, antes e sempre, um solitário; mesmo entre cúmplices, sua solidão-sem-mágoa[ix] mostrará que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Para o hedonista, só será possível a dignidade de rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tivermos o hábito de dar forma de arte à vida; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[x].

[extrato de artigo inédito, 2005.]


[i] Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Monica Stahel. p.227-311.

[ii] Idem, p.235-236.

[iii] Antonin Artaud. “Para terminar com el juicio de Dios” in Paginas Escogidas. Buenos Aires, NEED, 1997. tradução Sara Irwin & Mirta Rosenberg. p.193-229.

[iv] Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972.

[v] Roberto Freire. Utopia e paixão. Rio de Janeiro, Guanabara, 1984.

[vi] Hakim Bey. CAOS – Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo, Conrad, 2003. tradução Patricia Decia & Renato Resende. & TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo, Conrad, 2001. tradução Patricia Decia & Renato Resende.

[vii] Guy Debord. Panegírico. São Paulo, Conrad, 2002. tradução Edson Cardoni.

[viii] Gilles Deleuze. ‘Desejo e Prazer’ in Cadernos de Subjetividade, PUC/SP. jun.1996. p.15-25. tradução Luiz B. L. Orlandi.

[ix] Roberto Freire. ‘Que cada um se antene enquanto é tempo’ in Viva eu Viva tu Viva o rabo do tatu! São Paulo, Símbolo, 1977. p.121-122.

[x] Michel Onfray. ‘Estética: pequena teoria da escultura de si’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.65-101.

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