Faltavam trinta minutos para o hora marcada. Vesti o capote, apaguei as luzes e desci até a garagem. Tudo que precisaria estava em meus bolsos: um maço de cigarros, caixa de fósforos, carteira de identidade e as chaves do carro. Limpo. Na mão, o endereço. Odeio andar carregado: a grande droga da civilização, a Inutilidade. Pessoas e objetos cuja necessidade é secundária e que trazes sempre contigo pelo simples fato de não suportares ser quem és.
Não precisava disso. Nada. Só do meu ódio: era ele que me movia adiante, me fazia forte. Amar é para os fracos. Odiar é uma questão de inteligência, requer perspicácia; estratégia: a do meu ódio já estava traçada e dizia que hoje nos encontraríamos. Sabia que o assunto não seria resolvido hoje. Assim rezava a lenda: tudo a seu tempo. Hoje é a chave. A voz dizia, insistente: "calma"... Calma. O motor acendeu-se em um ronco surdo e potente, V8, um bloco de energia cinética latente. Calma e potência. Assim deve ser o ódio: calmo e potente.
O portão se abriu para a noite fria, o vento balançava os galhos desfolhados das árvores, era inverno. Deslizei para a rua e liguei o rádio. Billie Holiday chorou pelos alto-falantes com Georgia on my Mind e lembrei de casa, do meu pai falecido. O endereço não era muito distante e eu tinha tempo. Sabia disso. Já sabia de tudo, só me faltavam as faces. Logo tudo faria mais sentido, concretizando-se como o ar que vira enxofre quando meu ódio vira paz. Não seria a primeira vez. Tampouco como foram as últimas ou serão as demais. Nunca é. "Nunca", a voz dizia. "Nunca" é tempo suficiente. Nunca é todo o tempo que eu precisava, mas nunca fico aquém das minhas expectativas.
Deslizo pela rua e meu Maverickão é como um lorde: "o poder está em suas mãos", meu pai dizia, "nunca perca". Eu levava o poder sempre comigo para o caso de furar um pneu e um macaco cruzar meu caminho. Não suporto macacos, nem porcos ou cadelas prenhas de viço narcísico. Por isso carrego e controlo meu ódio como ao lorde: seguro. Sempre foi assim e nunca mudará, apesar de nunca ser igual.
Cheguei dez minutos adiantado. Estacionei o carro em frente ao edifício e esperei pela hora marcada. Calma nunca é demais. Pontualidade e certeza. Ódio é uma questão de método. Meu pai era um homem metódico: "nunca perca". Foi o tempo de um cigarro e um Coltrane no rádio. O momento: conferi pela última vez o endereço e desci do carro em um ímpeto seguro, o vento concreto na face. O endereço escorreu pela sarjeta afora. Com ele a bagana do cigarro. Corri para baixo da marquise, evitando a chuva: a cidade fede em perfumes acre como o próprio cheiro da morte. Era um prédio alto, cravado entre dois outros, formando um paredão cinzento. A porta estava fechada e procurei o número no porteiro eletrônico: quinhentos e nove. Um toque firme e a porta é aberta instantes depois. Ninguém perguntou nada, não foi necessário se anunciar. Melhor assim. Método.
O elevador estava no térreo e me levou, ruidoso, ao quinto andar: ruidoso e sem potência. Mau sinal. "O poder está em suas mãos". Um passo firme para o corredor que se alastrava, longo e frio, para ambos os lados. Um movimento involuntário me levou para a esquerda, para os fundos da construção. Método. Lá, ficava o apartamento, quilômetros longe da civilização. Bom sinal. Passos firmes, cinéticos como meu Maverickão. Três batidas: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. "Deus nos colocou no mundo para vencer", ele dizia. Tinha um rosto duro, amargo, diferente do que me atendeu: um rosto de quem não tem nada a dizer, mas muito a declarar. Entrei. "O poder está em suas mãos".
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