(o mapa do universo) ...anoiteceu e as luzes novamente apagaram enquanto as cortinas no antigo pano vermelho aveludado começaram a cerrar a grande boca aberta meia-abóbada do palco no fundo do antigo teatro municipal. de pouco em pouco, o rumor das platéias silenciava em todos os ânimos que pareciam enfim tomar a calma necessária à paz maciça e impertinente, névoa indolente e preguiçosa, densa e espessa, a crescer desde a sombra nos limites do ambiente. num estalo-click a máquina-motor que controla a profundidade do fosso começou a rugir sob os queixos, fazendo subir do fosso o movimento dos primeiros acordes do suave saxofone de um sinuoso coltrane aparecendo em texturas. acompanhado dos músicos habituais desta banda entre as vidas, recolheu um colorido miles em bitche's brew, a verve nervosa de elvin jones atrás dos tambores em madrepérola e o arco de mingus envergando e já torcendo em suores o contrabaixo da acústica. entre sonho e realidade, na interface-fusão do real e do justo, o panamá e o charuto de tom jobim sentam sorrindo a degustar outro piano, justamente na perspectiva fiel dos tambores-maracatu da nação zumbi. naná vasconcelos toma com seu berimbau elétrico logo após anunciar a pimenta de elis regina, que rápida e faceira aparece para assumir o microfone e anunciar que, naquela noite, eram esperadas participações especiais de sid vicious, roger waters e jimi hendrix nos plugues de seis cordas. de cada um dos quatro cantos da sala de arquitetura barroca, sob as bases da cúpula erguida em tangentes sutis, surgem os anfitriões do baile de máscaras que acabava de começar: a cigana que leu a história da humanidade nas linhas das mãos de um quadro de michelangelo, o velho e cego sábio chinês, o louco esotérico em sua camisa de força e uma criança ruiva rastafari. cada um trazia um vaso cheio de rosas brancas e um pote com sementes de papoula colhidas de véspera. sem parar por um segundo, percorrerem cada um dos quadrantes leste-oeste-centro-norte-sul da audiência, cada um bradando versos fluidos em sua singular lucidez; a cada um dos presentes uma flor, uma semente, um beijo e um pretexto. cada qual a seu tempo, após o necessário derretimento dos ossos e órgãos, convite orgânico para que todos a rigidez dos corpos se espalhasse em distensão pelo prédio, platéias alta e baixa mergulharam nos ambientes vazios do antigo teatro, crescendo o rumor dos passos, palmas e vozes autorizadas a crescer. saindo das fileiras apertadas dá-lincençaí, os primeiros sumiram sozinhos, em pares ou grupos não-coesos por alguma portinhola ou vão entre-as-paredes, perdendo-se nas escadarias que dão no lugar-nenhum da experiência. outros hesitaram por segundos antes de tomar atitude, outros ainda permaneceram sentados por alguns momentos, abraçados às poltronas fofas ou aos líquidos vizinhos, sentindo o cheiro afrodisíaco das flores ou colocando com cuidado as sementes por sob o encontros das línguas úmidas. estavam lá o yuppie-sofisticação, o hippie-woodstock, a mulata-bossa-nova, o anarquista-noturno, o operário-padrão, alguns super-heróis da marvel e aquele velho recordista dos cem metros rasos na olimpíada de setenta-e-tantos. em duas ou três dezenas de minutos, o teatro era habitado e atravessado no palmilhar das peles e metragens, tempo raro que levava a novas experimentações da máquina arquitetônica deste conservatório-babel. da banda, seguiu-se uma jam suave e delicada mas precisamente eficaz, alternando jazz, samba e foxtrot ou mesmo elevando as misturas em maxixes, candombes e emboladas, cores e matizes em diversas harmonias de semi-tom; seu som era ouvido ao fundo em praticamente todo cômodo do prédio. no foyer, um happening de surrealistas agenciados pelo espectro de breton; nos camarins, instalações de hélio oiticica trazendo uma visão inusitada do morro da mangueira; no sótão, uma roda de capoeira angola jogada por suecos em manga de camisa; nas escadas, ninfas e órfãos esperavam seus afetos ficarem gravados no negativo de um desejo virgem; na sala da administração, em penumbra, judeus e muçulmanos faziam uma discussão sobre o tao enquanto, no pátio, jovens nus caminhavam colhendo os cogumelos que brotaram após a última chuva do dia. a noite avançava por sobre babel enquanto todas as escadas se multiplicavam em três ou quatro saídas a mais. no forro do telhado, foi organizado às pressas um show com fogos de artifício e balões de são joão. tantas horas quanto possíveis se passaram entre o anoitecer e o amanhecer, quando um desjejum tropical foi servido a todos entre mesas fartas e confortáveis divãs de cantina. hábito do cozinheiro tailandês que era mantido e incentivado por todos os envolvidos na manutenção do teatro, seus restos foram transformados em sementes que cada qual levava a plantar no jardim dos vizinhos. no final do baile, as grandes portas de carvalho foram abertas pelo antigo escritor do desassossego e, calmamente, todos foram saindo, arrebatando a cidade com um brilho intenso em direção às suas casas, deixando curvos os ângulos de todas as esquinas por onde passavam. o último a sair foi aquele mascarado de presidente-da-república que, enquanto todos adormeciam sobre a fertilidade das silhuetas espalhadas por sobre os lençóis emaranhados, colocava com rancor a fita-vhs de apocalipse now pela enésima vez no seu aparelho de vídeo-cassete.
-2004.
-2004.
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