Primeiro ponto para um programa vital: percorrer tua metrópole a esmo, sem que tenhas trajeto pré-definido e sem que tragas um mapa à mão. Para tal programa, uma sugestão descartável seria encheres o tanque, ou pegares o primeiro coletivo, ou dobrares a primeira esquina, ou simplesmente dares o primeiro passo; enfim, dar-te logo ao caminho, aquilo que só adquire sentido a partir do movimento. Posto a caminho, traça teu percurso pelo tempo que considerares suficientemente confortável ou prudente, tempo-limite; quando chegares neste momento remoto da tua errância e estiveres sobre teu tempo-limite, facilmente estarás cara a cara com a amplitude da metrópole que teu discernimento consegue suportar, estarás corpo a corpo em zonas de confronto direto com aquilo que te angustia ou fascina, sensações-limite que ostentas entre determinadas geografias urbanas. No ponto remoto da tua errância, sobre as fronteiras do considerado confortável ou prudente, aí estarão não só as bordas da tua cartografia da metrópole em seus territórios de aço e concreto; e não só as bordas da tua cartografia cognitiva, teus territórios de discernimento, visibilidade e direcionamento; estarão também as bordas afetivas de tua cartografia em suas intensidades invisíveis, ali onde as sensações, seus potenciais e limiares, transformam-se em inevitáveis curvas de deriva no cotidiano da tua experiência.
A geografia, além de uma geografia física e cognitiva, é também uma geografia afetiva; matérias física, semiótica e intensiva; é na mais contundente co-extensão entre estes três estratos que poderemos pensar tanto uma excursão topográfica nos relevos da cidade quanto uma interpretação dita política sobre os corpos e liames que os preenchem. O movimento que a metrópole percorre em sua apropriação e distribuição no terreno, assim como os diferentes dispositivos materiais e lógicos dos quais a metrópole lança mão para existir, todos os seus territórios de concreto e discernimento, tudo isso só pode ser compreendido em co-extensão com os movimentos afetivos que lhe são ou foram correspondentes.
Para cada conjunto de encontros e desencontros com as ruas e alamedas, as praças, parques ou passeios, as casas e prédios; para cada conjunto de encontros e desencontros com as suas inscrições, nomes e signos populares; para cada conjunto de encontros e desencontros entre as velocidades, sentidos e desvios da metrópole; para cada um desses conjuntos, todo um conjunto de encontros e desencontros com os campos semióticos e afetivos que lhes são co-extensivos, encontros e desencontros com as diversas zonas intensivas e as diferentes matérias de expressão que preenchem nosso campo, diferentes possibilidades sensitivas e enunciativas que irrompem sobre e arrebatam completa ou parcialmente cada um de nossos corpos. São estas diferentes possibilidades sensitivas e enunciativas, assim como sua conseqüente organização num corpo estendido em aparatos e objetos materiais, o que configura a complexidade de um campo a partir do qual tanto cada individualidade quanto a própria realidade ganharão consistência e espessura[i].
Na geografia afetiva encontramos as sensações e as intensidades, e é esta dimensão sensorial do corpo que força-nos a territorializar cotidianamente uma nova existência, um corpo que acabe por expressar-se também cognitiva e fisicamente. O corpo é uma forma de resposta às sensações inéditas que em nós se inscrevem quando entramos em contato com as diferentes situações nesta nossa errância a meio caminho, o modo de vida como uma resposta àquilo que Suely Rolnik[ii] chama de marcas.
As marcas são estados inéditos que são inscritos na experiência do corpo, estados de desassossego que ele vai sentindo à medida que entra em contato com as diferentes configurações dos fluxos de desejo, com as diferentes tramas de intensidades e os diferentes vetores de força que agenciam e compõem as situações e acontecimentos de uma errância. Cada uma das marcas inéditas que vão sendo inscritas neste corpo acaba por demandar uma outra articulação que a possa existencializar, dar-lhe um território existencial a partir do qual este mesmo corpo ganhará movimento.
Somos obrigados a pensar; o pensamento não é algo dado ou evidente, mas um acontecimento raro cujo sinal aponta para o descontínuo em determinada trajetória de vida: a cognição vira pensamento somente quando o pensar ocorre de maneira diferencial, dando resposta a um conjunto intensivo e inédito de afetos e sensações. Da mesma forma, o ato somente pode ser chamado como tal quando se apresenta como a elevação do diferencial, ficando todo o resto dotado somente do poder de permanência. Na gênese do viver está sempre presente a dinâmica de um devir, um constrangimento à produção de uma diferença; somos constantemente coagidos à elevação do diferencial, mesmo que nossa teima seja ainda não saber aceitar ou lidar com a liberdade e a responsabilidade que isso acarreta.
Quando a dimensão intensiva demanda cotidianamente o trabalho de produção de novos territórios existenciais, ela demanda nada menos do que a produção cotidiana de uma subjetividade, todo um complexo modo de vida; ela demanda, por constrangimento ou por acaso, a produção da metrópole. De acordo com as diferentes configurações deste campo no qual estamos inscritos, nosso plano de imanência, somos forçados a produzir tanto uma escultura viva de si[iii] quanto uma realidade do fora, dando a este conjunto uma especial e necessária consistência vital e material, um conjunto de liames e relações que procuramos estabelecer para a produção e a nossa inscrição na realidade.
[i] Neste ponto, são especialmente interessantes os escritos situacionistas acerca da cidade. Uma ótima compilação destes textos antes dispersos pode ser encontrada em: Paola B. Jacques (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
[ii] Ver: Suely Rolnik. “Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico” in Cadernos de Subjetividade. v. 1, n.2, p. 241-251, 1993.
[iii] Michel Onfray, no projeto de um materialismo hedonista, utiliza a escultura como modalidade de trabalho a ser levada em conta quando da formulação de um modo de vida, oferecendo o corpo e a escultura como forma de cuidado de si. Ver especialmente: Michel Onfray. “Estética: pequena teoria da escultura de si” in A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p.65-101. & Michel Onfray. “Corpo” in A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p.99-225.
[iv] “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em algum lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma” in Gilles Deleuze & Félix Guattari. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo, Editora 34, 1995, p.18.
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