19.11.06

cartograma#56

http://www.takouviski.deviantart.com

pinacoteca eletrônica do artista plástico carioca Tahian.

9.11.06

cartograma#55 - Oniros

http://www.oniros.com.br/

Poço submúltiplo de cuja água insone a vida é paródia, percalço das buscas e paragem das andanças sem rumo, impermanência, imprecisão, verve voraz que vaza as palavras, mantido pelo colega de hospício Giovani Andreoli.

3.11.06

cartograma#54 - Henry Miller

"Há um tempo em que somos tiranizados pelas idéias, em que nos transformamos em vítimas indefesas do pensamento alheio. Esta 'possessão' pelos outros sempre parece ocorrer em períodos de despersonalização, nos quais nossas identidades conflitantes desgrudam umas das outras, por assim dizem. Normalmente as idéias não nos abalam; vêm e vão, são aceitas ou rejeitadas, usadas como camisas, removidas como meias sujas. Mas nos períodos que chamamos de crises, quando o espírito perde a unidade e racha como um diamante sob golpes de marreta, essas idéias inocentes de um sonhador nos tomam de assalto, alojam-se nas reentrâncias do cérebro e por algum sutil processo de infiltração acarretam uma alteração definitiva e irrevogável da personalidade. Por fora, nenhuma grave mudança ocorre; o indivíduo afetado não assume de chofre um comportamento diferente; pelo contrário, pode até comportar-se de um modo mais 'normal' do que antes. E essa normalidade aparente vai assumindo a qualidade de um dispositivo de proteção. De uma aparência ilusória, passa à ilusão interior. A cada nova crise, porém, adquire nova consciência mais intensa de uma mudança que não é mudança, mas antes a intensificação de alguma coisa que se esconde bem no fundo de seu interior. Agora, toda vez que fecha os olhos, ele realmente consegue ver. Não enxerga mais uma máscara. Vê sem ver, para ser mais exato. A capacidade de ver sem enxergar, uma percepção fluida de tudo que é intagível: a fusão de imagem e som: o coração da teia. É aqui que brotam as personalidades distantes que fogem ao contato grosseiro com os sentidos; é aqui que os sons secundários produzidos pelo reconhecimento se entrechocam com delicadeza, resultando em harmonias claras e vibrantes. Nenhuma linguagem é empregada. nenhum contorno é delineado."


-Henry Milles, Sexus, cap.9.

26.10.06

cartograma#52

"Muitas filosofias referem-se à vista: poucas ao ouvido; menos crédito ainda dão ao tato e ao odor. A abstração recorta o corpo que sente, suprime o gosto, o olfato, o tato, conserva apenas a vista e o ouvido, intuição e entendimento. Abstrair significa menos sair do corpo do que o partir em pedaços: análise. Recuo ante a dificuldade erguendo um palácio de abstrações. (...) A alma e o corpo não se separam, mas se misturam, inextricavelmente, mesmo na pele. Assim, dois corpos misturados não formam um sujeito separado de um objeto."

-Michel Serres, Os Cinco Sentidos - Filosofia dos corpos misturados, cap.1.

cartograma#51 - estratificação...

...é o movimento de organizar camadas, matizes.

25.10.06

cartograma#50 - o campo II - fractal

cartograma#49 - terminação

a pele, o mais profundo de nós mesmos.
o mais profundo é a interface.
não há exterior nem interior, dentro ou fora.
o fora cruza adentro, o dentro verte afora.
dentro/ fora representam adensamentos da substância.
a
terminação é elemento de negociação.
a
terminação é o ponto mais profundo do corpo.
o elemento de interface, negociação.
na
terminação ocorre a partilha da sensível.

dentro/fora = variações de densidade, espessuras.

suporte rudimentar: Paint Brush.

cartograma#48 - o campo

o campo
platô de intensidade zero, plano de imanência, plano de consistência, substância.


sobre a figura: tentativa de expressão da matriz intensiva, derivada e amplificada de forma elementar com ferramentas digitais rudimentares oferecidas por softwares massivos da Kodak, com finalização gráfica precária no Paint Brush. imagem-base tomada de uma fotografia do olho, escolhida e desvirtuada como forma de apresentar o campo intensivo aquém da visão. uma caricatura do olhar. registra o ponto esparso sob qualquer ângulo de visão, procurando nossa dimensão pré-perceptiva, sensorial. sensorialidade do corpo. é necessário estabelecer uma distinção entre sensação, percepção e cognição. deslizando sob a imagem espetacular e seu entendimento, sob a função imagética do olhar e a estrutura do saber, deslizando sob os territórios, um fluxo intensivo, o campo das vibrações, das afetações. o platô com intensidade = zero atingindo a interface orgânica, pode ou não ser percebido e pode ou não ultrapassar o limiar cognitivo, na inteligência ou na memória. o plano de imanência ou de consistência é substância intensiva que atravessa a carne; deste plano de sensorialidade é que se destacarão fragmentos na forma da visão ou da imagem. no intensivo, o corpo não trabalha com a imagem; o intensivo é um abismo, a percepção é sua borda, a cognição é seu mapa.

- variações do campo ao território:

ou

- o que se passou?


zona de cor outra, zonas de cor = segmentaridade maleável, territorialidades flexíveis –ecologias, subjetividades, dimensões e matérias que atingem forma expressiva, parcial ou plenamente inteligíveis, quase-estruturas ou estruturas abertas. zonas de expressão modulada desde a substância primeira: do olho ao olhar, do olhar ao ver, imagem em movimento. zona de utilidade, identificação. zona do possível onde ele já pode ser iimaginado em evento. zona preta = segmentaridade dura. energias tangentes de captura; impulsos de permanência. forças tangentes cuja tendência é estacionária e parasitária, onde o olho, o olhar e a visão tendem ao Mesmo. movimento de circunscrição. zona do possível onde ele tende ao Mesmo. o círculo central em torno do núcleo representa a tendência massiva de centralização e organização, tendência capitalística do equivalente comum. agregação de forças dispersas no vórtex unitário, para onde tende toda a dureza que dali mesmo se irradia. zona branca = zona de fuga, escape. zonas ditas fronteiriças ou marginais. o fronteiriço e o marginal ocorrendo entre os centros e nas periferias. zonas do possível, mesmo que o possível não tenha sido convertido em evento, nem possa ser imaginado enquanto tal; alta dose de imprevisibilidade e virtude dissidente radicalmente dissidente. zona cinza = pontas de escape tanto ao dado quanto ao possível. futuros insondáveis. aquilo que ainda não existe.

a figura do campo seria melhor entendida se ganhasse espessura e profundidade, multidimensionalidade e movimento (ver figura do fractal no cartograma#50 para representação gráfica mais adequadas insinuando interpretações mais caóticas. utilizar substâncias de expansão do campo perceptivo antes.)

cartograma#47

cartograma#46 - Murilo Mendes

***

IDÉIAS ROSAS

Minhas idéias abstratas,
De tanto as tocar, tornaram-se concretas:
São rosas familiares
Que o tempo traz ao alcance da mão,
Rosas que assistem à inauguração de era novas
No meu pensamento,
No pensamento do mundo em mim e nos outros:
De eras novas, mas ainda assim
Que o tempo conheceu, conhece e conhecerá.
Rosas! Rosas!
Quem me dera houvesse
Rosas abstratas para mim.

-Poesia Liberdade, 1943-1945.

24.10.06

cartograma #45


"É como na vida. Há na vida uma espécie de falta de jeito, de fragilidade da saúde, de constituição fraca, de gagueira vital que é o charme de alguém. O charme, fonte de vida, como o estilo, fonte de escrever. A vida não é sua história; aquele que não têm charme não têm vida, são como mortos. Só que o charme não é de modo algum a pessoa. É o que faz apreender as pessoas como combinações e chances únicas que determinada combinação tenha sido feita. É um lance de dados necessariamente vencedor, pois afirma suficientemente o acaso. Por isso, através de cada combinação frágil é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança ímpar no ser. É curioso como os grandes pensadores têm, a um só tempo, uma vida pessoal frágil, uma saúde bastante incerta, ao mesmo tempo que levam a vida ao estado de potência absoluta ou de 'grande Saúde'. Não são pessoas, mas a cifra de sua própria combinação."

-Gilles Deleuze, Diálogos, cap.1a.
c

cartograma#44 - Henry Miller

"Um pouco mais de felicidade, pensei comigo enquanto escutava as palavras do rapaz, e ele se transformaria no que se chama de um homem perigoso. Perigoso porque ser feliz o tempo todo seria atear fogo ao mundo. Fazer o mundo rir é uma coisa; torná-lo feliz é coisa muito diferente. Ninguém jamais o conseguiu. As grandes figuras, aqueles que influenciaram o mundo, para o bem ou para o mal, sempre foram figuras trágicas. Até são Francisco de Assis era um homem atormentado. E mesmo Buda, com sua obsessão por eliminar o sofrimento, não se pode dizer que tenha sido exatamente um homem feliz. Estava além disso, se preferirem: estava sereno, e quando morreu, ao que se conta, seu corpo todo fulgurava, como se a própria medula dos seus ossos estivesse em chamas."

-Henry Miller, Sexus, cap.6.

22.9.06

cartograma#43 - amor platônico

Na semana do casamento, a menstruação chega causando verdadeiro desespero na noiva que aos prantos desabafa com a mãe: "Poxa mãe, justo na semana do meu casamento tenho que ficar desse jeito! Eu sou uma desgraçada mesmo! Como vai ser na lua de mel? O meu futuro marido vai me odiar! Buáááááá!" Vendo a situação da filha, a mãe resolve conversar com o noivo a fim de tranqüilizar a noivinha neurótica. "Mas, Dona Maria' - diz o noivo - 'fale para ela não se preocupar, pois sei que a tensão do casamento pode provocar isso. Por favor, a senhora pode ir para casa tranqüila e, por favor, diga à sua filha que o ocorrido é um mero infortúnio e nada significa comparado ao tamanho de nosso amor. Diga a ela que ficaremos no amor platônico!" Aliviada, a sogra volta para casa rapidamente para acalmar a filha. "Filha! Olha, fui lá falar com o teu noivo e ele entendeu o seu problema. Ah, e ele também falou para você não se chatear que, enquanto você permanecer menstruada, vocês ficam só no amor platônico, viu?" A filha fica aliviada e, quando a mãe já estava saindo do quarto, pergunta: "Mãe! Mas o que é "amor platônico"?" "Também não sei o que é filha. Mas, em todo caso, lave bem a bunda e escove bem os dentes."

cartograma#42

O mensageiro chegou atrasado,

então anunciou o atraso dos mensageiros.

21.9.06

cartograma#41

O fluxo de vento, ventania. O fluxo dos encouraçados cruzando a Baía. O fluxo das marés, o fluxo nas ondas da maresia. O fluxo de carros e fedores na Linha Vermelha. O fluxo da miséria. O fluxo das gentes, dos coletivos, de carros cortando o mapa das avenidas do Aterro. O Aterro: fluxo da terra do Centro. O Centro é fluxo. O fluxo dos pássaros no fluxo dos odores da primavera. O fluxo dos cânticos. O fluxo dos micos no fluxo da seiva da mangueira. O fluxo das mangas no fluxo do vento. O fluxo dos cães e dos gatos atrás do fluxo das mangas. O fluxo de Lúcio e nosso fluxo por Lúcio. O fluxo em trânsito das vozes vizinhas, o fluxo de gente nas escadas de mármore. Os fluxo dos daqui cruzando com o fluxo das visitas. O fluxo das festas. O fluxo da comida na cozinha e o fluxo da louça na pia. O fluxo de Andrezza. O fluxo das plantas quebrando as linhas retas das janelas, o fluxo das flores e pendões no fluxo dos dias, fluxos de água e luz. A luz, onda, fluxo. À noite, derivas, fluxos. O fluxo da grana. O fluxo das contas. O fluxo da cerveja da fábrica à latrina. O fluxo da fumaça. A metástase: o fluxo do câncer. O fluxo da onda. O fluxo do esperma. Porra, fluxo de vida. O fluxo da neurose e o fluxo das datas no calendário. O fluxo das imagens e o fluxo das palavras. Fluxos e fluxos de sensações e o fluxo da escrita. Fluxos de afetos. Fluxo das pessoas no fluxo das amizades e amores. O fluxo das memórias e esquecimentos. Fluxos de perdas e ganhos cortando o fluxo das utopias. Fluxos e fluxos de sonhos cortando o fluxo do sono. O fluxo dos aviões cruzando céus em Paris, o fluxo da juventude nos canais de Amsterdam. Fluxos de saliva e lágrimas. Fluxos sangüíneos. Impulsos elétricos: fluxos. A matéria, vida e morte, fluxo de fluxos. A urgência: aceleração dos fluxos.

18.9.06

cartograma#40

`Would you tell me, please, which way I ought to go from here?'
`That depends a good deal on where you want to get to,' said the Cat.
`I don't much care where--' said Alice.
`Then it doesn't matter which way you go,' said the Cat.
`--so long as I get somewhere,' Alice added as an explanation.
`Oh, you're sure to do that,' said the Cat, `if you only walk long enough.'

http://www.cs.cmu.edu/~rgs/alice23a.gif

cartograma#39

`What sort of people live about here?'
`In that direction,' the Cat said, waving its right paw round, `lives a Hatter: and in that direction,' waving the other paw, `lives a March Hare. Visit either you like: they're both mad.'
`But I don't want to go among mad people,' Alice remarked.
`Oh, you can't help that,' said the Cat: `we're all mad here. I'm mad. You're mad.'
`How do you know I'm mad?' said Alice.
`You must be,' said the Cat, `or you wouldn't have come here.'

14.8.06

cartograma#22 - torção

ménage ao poetinha:

Moro no Rio de Janeiro,
minha casa tem banheira,
e uísque.

recomeçou a poesia,
neste tom.

(cartograma#22 agencia o passado)

7.8.06

cartograma#38

pé em deus e fé na tábua.

6.8.06

cartograma#37 - sabedoria popular

quem mexe o pirão é que sabe o tanto da farinha.

2.8.06

cartograma#36 - o choque

o choque de teus pensamentos furiosos
com a inércia da boca e dos braços de outros.
o choque dos cerimoniais antigos
com a velocidade dos aviões de bombardeio.
o choque da foice contra o cristal dos milionários.
o choque das roseiras emigrantes
com o silêncio das linhas retas nas janelas.

a tempestade calcula um choque de distâncias
com o lúcido farol e seus presságios.
chocam-se as águias arredando a noite
com o armário que, inalterável, rumina.
um ouvido resistente poderia perceber
o choque do tempo contra o altar da eternidade.
choca-se a enorme multidão sacrificada
com o ditador sentado na metralhadora.
choca-se a guilhotinha erguida pelo erro dos séculos
com a pomba mirando a liberdade no horizonte.

murilo mendes, poesia liberdade, 1943-1945.

cartograma#35 - LastFM

www.last.fm >>> "a sua última FM", segundo Dieguito.

18.7.06

cartograma#33 - mucosa

ENCONTRO

Os tecidos, aos poucos, desvelando o corpo nu ao meu lado.

A respiração sôfrega e calma, o toque sutil deslizando a palma em geografias desenhadas por arquitetos do perfeito.

As formas

cores

cheiros

gostos difusos na escuridão do ar.

Contornos realçados no satélite negro/alvo da noite.

A janela aberta...

Oxigênio. Hormônio. E Adrenalina...

Susurros baixos, inaudíveis por não precisarem de sentido.

Percebendo a sucessão das formas, a angústia dos fios...

Entrelaçados. Molhados. Secos. Quebradiços.

O peso liberado no paralelo dos braços, na lateralidade do claustro.

A espera intensa e despreocupada pelo momento, seu ápice.

Alongamento de vértebras, distensão de fibras, corrosão sentimento.

A entrada em vida: Movimento Retilíneo Uniformemente Curvilíneo.

Parcialmente subentendido. Totalmente executado...

Na cumplicidade sem fato da forma infinita de se fazer/ser intenso.

No cruzamento analítico da possibilidade remota sem ser coagido.

Cúmplice.

Díade.

Carnal.

A vida corre em passos ágeis, quentes, úmidos e...

Aconchegante, invasiva, pormenorizadamente nem sempre verdadeira.

Segue vazia e cheia, suja e vagabunda. Ingrata.

Sim, senhor... E vamos nós de novo.

mucosáridamentequente

cheiaudaz, saudações a você...

subitamenterelaxadormente

Mais uma noite assim e estaremos

No mesmo lugar.

SALDO

Últimos Lançamentos - Extrato Inexistente

ESPERA

E a dança dos dias toma as dores do parto.

A cadeira vazia contém as memórias do fato absurdo,

Significantemente ato fálico, onírico, sintomático.

Voando ao céu em asa de cera,

Sustentado no ar

frágil pela crendice na vida,

E presa ao passado como em um tubo preto, é vazia...

A essência interna do particular intrusivo...

Morto ou Preservado:

Se o mundo acabasse hoje

Que será que eu diria?

RESIGNAÇÃO

Há tempos não vejo o amor despreocupado...

Invasivo e perfeito, singular impossível.

Quando a teia de olhares cruza multidões sem visto,

A frieza do ser me guia a um ambiente longe e sozinho.

Isolado do canto, posto no centro das contradições, inibido.

A culpa surge quando o melhor de nós é preservado.

Faço-me frágil, vivo instintivo. Tradicional, racional e...

Obedientemente objetivo, óbvio omitido.

Se eu dissesse que te amo

O que pensarias?


- 1999, para Giu.

cartograma#32 - geografia afetiva

Primeiro ponto para um programa vital: percorrer tua metrópole a esmo, sem que tenhas trajeto pré-definido e sem que tragas um mapa à mão. Para tal programa, uma sugestão descartável seria encheres o tanque, ou pegares o primeiro coletivo, ou dobrares a primeira esquina, ou simplesmente dares o primeiro passo; enfim, dar-te logo ao caminho, aquilo que só adquire sentido a partir do movimento. Posto a caminho, traça teu percurso pelo tempo que considerares suficientemente confortável ou prudente, tempo-limite; quando chegares neste momento remoto da tua errância e estiveres sobre teu tempo-limite, facilmente estarás cara a cara com a amplitude da metrópole que teu discernimento consegue suportar, estarás corpo a corpo em zonas de confronto direto com aquilo que te angustia ou fascina, sensações-limite que ostentas entre determinadas geografias urbanas. No ponto remoto da tua errância, sobre as fronteiras do considerado confortável ou prudente, aí estarão não só as bordas da tua cartografia da metrópole em seus territórios de aço e concreto; e não só as bordas da tua cartografia cognitiva, teus territórios de discernimento, visibilidade e direcionamento; estarão também as bordas afetivas de tua cartografia em suas intensidades invisíveis, ali onde as sensações, seus potenciais e limiares, transformam-se em inevitáveis curvas de deriva no cotidiano da tua experiência.

A geografia, além de uma geografia física e cognitiva, é também uma geografia afetiva; matérias física, semiótica e intensiva; é na mais contundente co-extensão entre estes três estratos que poderemos pensar tanto uma excursão topográfica nos relevos da cidade quanto uma interpretação dita política sobre os corpos e liames que os preenchem. O movimento que a metrópole percorre em sua apropriação e distribuição no terreno, assim como os diferentes dispositivos materiais e lógicos dos quais a metrópole lança mão para existir, todos os seus territórios de concreto e discernimento, tudo isso só pode ser compreendido em co-extensão com os movimentos afetivos que lhe são ou foram correspondentes.

Para cada conjunto de encontros e desencontros com as ruas e alamedas, as praças, parques ou passeios, as casas e prédios; para cada conjunto de encontros e desencontros com as suas inscrições, nomes e signos populares; para cada conjunto de encontros e desencontros entre as velocidades, sentidos e desvios da metrópole; para cada um desses conjuntos, todo um conjunto de encontros e desencontros com os campos semióticos e afetivos que lhes são co-extensivos, encontros e desencontros com as diversas zonas intensivas e as diferentes matérias de expressão que preenchem nosso campo, diferentes possibilidades sensitivas e enunciativas que irrompem sobre e arrebatam completa ou parcialmente cada um de nossos corpos. São estas diferentes possibilidades sensitivas e enunciativas, assim como sua conseqüente organização num corpo estendido em aparatos e objetos materiais, o que configura a complexidade de um campo a partir do qual tanto cada individualidade quanto a própria realidade ganharão consistência e espessura[i].

Na geografia afetiva encontramos as sensações e as intensidades, e é esta dimensão sensorial do corpo que força-nos a territorializar cotidianamente uma nova existência, um corpo que acabe por expressar-se também cognitiva e fisicamente. O corpo é uma forma de resposta às sensações inéditas que em nós se inscrevem quando entramos em contato com as diferentes situações nesta nossa errância a meio caminho, o modo de vida como uma resposta àquilo que Suely Rolnik[ii] chama de marcas.

As marcas são estados inéditos que são inscritos na experiência do corpo, estados de desassossego que ele vai sentindo à medida que entra em contato com as diferentes configurações dos fluxos de desejo, com as diferentes tramas de intensidades e os diferentes vetores de força que agenciam e compõem as situações e acontecimentos de uma errância. Cada uma das marcas inéditas que vão sendo inscritas neste corpo acaba por demandar uma outra articulação que a possa existencializar, dar-lhe um território existencial a partir do qual este mesmo corpo ganhará movimento.

Somos obrigados a pensar; o pensamento não é algo dado ou evidente, mas um acontecimento raro cujo sinal aponta para o descontínuo em determinada trajetória de vida: a cognição vira pensamento somente quando o pensar ocorre de maneira diferencial, dando resposta a um conjunto intensivo e inédito de afetos e sensações. Da mesma forma, o ato somente pode ser chamado como tal quando se apresenta como a elevação do diferencial, ficando todo o resto dotado somente do poder de permanência. Na gênese do viver está sempre presente a dinâmica de um devir, um constrangimento à produção de uma diferença; somos constantemente coagidos à elevação do diferencial, mesmo que nossa teima seja ainda não saber aceitar ou lidar com a liberdade e a responsabilidade que isso acarreta.

Quando a dimensão intensiva demanda cotidianamente o trabalho de produção de novos territórios existenciais, ela demanda nada menos do que a produção cotidiana de uma subjetividade, todo um complexo modo de vida; ela demanda, por constrangimento ou por acaso, a produção da metrópole. De acordo com as diferentes configurações deste campo no qual estamos inscritos, nosso plano de imanência, somos forçados a produzir tanto uma escultura viva de si[iii] quanto uma realidade do fora, dando a este conjunto uma especial e necessária consistência vital e material, um conjunto de liames e relações que procuramos estabelecer para a produção e a nossa inscrição na realidade.

A metrópole é constantemente transversalizada por este cartograma rizomático[iv] das intensidades, cartograma que teima não respeitar os conjuntos de áreas loteadas, os limites de velocidade, os sentidos da circulação e as palavras de ordem das organizações oficiais. As sensações e intensidades, em sua virtude dissidente, forçam-nos a inscrever nosso corpo na metrópole sempre diferentemente. Para perceber este movimento só é necessária uma longa preparação.


[i] Neste ponto, são especialmente interessantes os escritos situacionistas acerca da cidade. Uma ótima compilação destes textos antes dispersos pode ser encontrada em: Paola B. Jacques (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.

[ii] Ver: Suely Rolnik. “Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico” in Cadernos de Subjetividade. v. 1, n.2, p. 241-251, 1993.

[iii] Michel Onfray, no projeto de um materialismo hedonista, utiliza a escultura como modalidade de trabalho a ser levada em conta quando da formulação de um modo de vida, oferecendo o corpo e a escultura como forma de cuidado de si. Ver especialmente: Michel Onfray. “Estética: pequena teoria da escultura de si” in A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p.65-101. & Michel Onfray. “Corpo” in A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p.99-225.

[iv] “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em algum lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma” in Gilles Deleuze & Félix Guattari. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo, Editora 34, 1995, p.18.

17.7.06

cartograma#31 - theremin.

Guia e companheiro para toda a família,
com todas as perguntas para suas respostas.

www.angelfire.com/vt/theremin.

cartograma#30 - my milk.org

http://mymilk.org

cartograma#29 - pocket films for travelers

http://www.pocketfilmsfortravelers.com/

16.7.06

cartograma#28 - tratado

Faltavam trinta minutos para o hora marcada. Vesti o capote, apaguei as luzes e desci até a garagem. Tudo que precisaria estava em meus bolsos: um maço de cigarros, caixa de fósforos, carteira de identidade e as chaves do carro. Limpo. Na mão, o endereço. Odeio andar carregado: a grande droga da civilização, a Inutilidade. Pessoas e objetos cuja necessidade é secundária e que trazes sempre contigo pelo simples fato de não suportares ser quem és.

Não precisava disso. Nada. Só do meu ódio: era ele que me movia adiante, me fazia forte. Amar é para os fracos. Odiar é uma questão de inteligência, requer perspicácia; estratégia: a do meu ódio já estava traçada e dizia que hoje nos encontraríamos. Sabia que o assunto não seria resolvido hoje. Assim rezava a lenda: tudo a seu tempo. Hoje é a chave. A voz dizia, insistente: "calma"... Calma. O motor acendeu-se em um ronco surdo e potente, V8, um bloco de energia cinética latente. Calma e potência. Assim deve ser o ódio: calmo e potente.

O portão se abriu para a noite fria, o vento balançava os galhos desfolhados das árvores, era inverno. Deslizei para a rua e liguei o rádio. Billie Holiday chorou pelos alto-falantes com Georgia on my Mind e lembrei de casa, do meu pai falecido. O endereço não era muito distante e eu tinha tempo. Sabia disso. Já sabia de tudo, só me faltavam as faces. Logo tudo faria mais sentido, concretizando-se como o ar que vira enxofre quando meu ódio vira paz. Não seria a primeira vez. Tampouco como foram as últimas ou serão as demais. Nunca é. "Nunca", a voz dizia. "Nunca" é tempo suficiente. Nunca é todo o tempo que eu precisava, mas nunca fico aquém das minhas expectativas.

Deslizo pela rua e meu Maverickão é como um lorde: "o poder está em suas mãos", meu pai dizia, "nunca perca". Eu levava o poder sempre comigo para o caso de furar um pneu e um macaco cruzar meu caminho. Não suporto macacos, nem porcos ou cadelas prenhas de viço narcísico. Por isso carrego e controlo meu ódio como ao lorde: seguro. Sempre foi assim e nunca mudará, apesar de nunca ser igual.

Cheguei dez minutos adiantado. Estacionei o carro em frente ao edifício e esperei pela hora marcada. Calma nunca é demais. Pontualidade e certeza. Ódio é uma questão de método. Meu pai era um homem metódico: "nunca perca". Foi o tempo de um cigarro e um Coltrane no rádio. O momento: conferi pela última vez o endereço e desci do carro em um ímpeto seguro, o vento concreto na face. O endereço escorreu pela sarjeta afora. Com ele a bagana do cigarro. Corri para baixo da marquise, evitando a chuva: a cidade fede em perfumes acre como o próprio cheiro da morte. Era um prédio alto, cravado entre dois outros, formando um paredão cinzento. A porta estava fechada e procurei o número no porteiro eletrônico: quinhentos e nove. Um toque firme e a porta é aberta instantes depois. Ninguém perguntou nada, não foi necessário se anunciar. Melhor assim. Método.

O elevador estava no térreo e me levou, ruidoso, ao quinto andar: ruidoso e sem potência. Mau sinal. "O poder está em suas mãos". Um passo firme para o corredor que se alastrava, longo e frio, para ambos os lados. Um movimento involuntário me levou para a esquerda, para os fundos da construção. Método. Lá, ficava o apartamento, quilômetros longe da civilização. Bom sinal. Passos firmes, cinéticos como meu Maverickão. Três batidas: em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. "Deus nos colocou no mundo para vencer", ele dizia. Tinha um rosto duro, amargo, diferente do que me atendeu: um rosto de quem não tem nada a dizer, mas muito a declarar. Entrei. "O poder está em suas mãos".

cartograma#28 - ulisses

Gatos.

Animais silenciosos, sabem moldar seu comportamento às situações para tirar proveito do que as pessoas podem lhes dar, sem misturar negócios com amizade. Poder é negócio. Só. Prazer é poder. Saber manipular o prazer dos outros para obter poder é o mais refinado dos prazeres. Gatos são perversos, no silêncio da sua caminhada noturna.

Ulisses.

Também é silencioso.

É meu único amigo. Não tenho gatos; acho que não preciso correr este risco: uma questão de método. Nunca cative algo que seja incógnito o suficiente para que desconheças seu poder. Ulisses não; tinha poder, sabia usá-lo, era letal, mas me ouvia. Era forte e coerente. Era direto, correto, incisivo e, ao mesmo tempo, sujo, barulhento e amedrontador. Sabia tomar suas diferentes facetas. Suas personas, sombras. Sempre matávamos juntos.

Dividia este prazer comigo desde a infância, quando passei a morar sozinho, a me virar sozinho. É seguro na cidade grande, e é só em quem eu confio, única e exclusivamente. Alguém mais velho, com mais experiência, que sempre me ajudou, depois que vim parar em Porto Alegre. Nossa amizade é estratégica; não viveríamos um sem o outro, jamais. Somos vida compartilhada, somos aura conjunta, mente e corpo, energia de explosão.

Ulisses, niquelado, 7 tiros.

Vive comigo desde os treze anos.

[2000]

cartograma#26

sotaque,

sou tique de cá,

terço do ataque sudeste,

lá do lado sul

com tal cacoete

e terno cá etéreo.

no térreo vôo,

em novo terreno,

ovo do ex-reino,

aqui aterriso.

não ouvi do rei,

nem li da ciência

-ouvido, lida, licença:

ouvi da -pá! hermética

do -pô! porto alegre.

hipótese protética

-halopathos;

doença do ego,

dá no que pega,

que renego,

e ne trago pas baixo.

vou ser pleno, sereno.

você, ser Eno.

*para todos os amigos e amigas que não me salvaram a vida.

cartograma#24

-o senador da república fora enterrado ainda vivo-

fixo a lâmpada sob a pantalha vermelha na mesa de cabeceira e olho hipnotizado. ela vai queimando minhas vistas pouco a pouco, descolando e secando minhas remelas grudentas e pestanas. vou olhando bem fixo pro pequeno sol cativo de tungstênio torcido no meio da lâmpada de cabeceira 40 uátts. é tão quente e vai me cegando aos poucos, me fazendo lacrimejar, enquanto quase (quase!) me lembro da outra coisa que me fazia o mesmo efeito. o que era?

a corrente de vento surge de trás, com o canto do olho consigo ver o vôo calmo da cortina branca e fina que acompanha a entrada de ar o corpo treme -usava o anel de ouro da família- cobertor caído o frio. não consigo nada além de ver e pensar entre o choque do frio e o sol raso de tungstênio.

tão frio, tremelicando, chacoalhando. respiro pela boca e o ar frio vem cortando de um jeito que me enregela até o escroto saco. tento trazer os joelhos ossos contra o peito e não consigo, nem consigo esfregar as mãos entrecoxas. onde está o meu pinto? e o meu saco? -duas pedras de gelo no uísque- desvio o olhar da lâmpada, cego de lágrimas em arco-íris. esse mesmo calor doentio, infinito, como eu (quase!) reconheci? da onde?

com a visão úmida de remelas, lágrimas e fogo escravo de tungstênio, dentro da lâmpada, vi um par de olhos que não eram os meus.

Olhos sem olhar.

-encontraram o corpo em outra posição-



[com Maurício O. Krebs]

cartograma#23

Dois olhos arregalados, nariz, duas narinas, bigode, bochechas, barba por fazer, a boca entreaberta, o rosto, a face. A cabeça careca, a nuca, duas orelhas limpas; o crânio, a Cabeça e o pescoço. O pomo de Adão. Ombros, dois, os braços, cotovelos, antebraços, mãos, dedos, dez; falanges, falanginhas, unhas. As palmas, duas. Dois sovacos, dois mamilos, um deles perfurado. Os pêlos, o peito, abdômen, barriga, umbigo, os pêlos. As clavículas, duas, a coluna vertebral toda dobrada sob o estrado da cama sobre o carpete com cheiro de pinho-sol. A bunda, os pêlos, o cu, os pêlos. O pênis, porra, escroto saco e pentelhos. As coxas, os pêlos, joelhos, canelas; os tornozelos, dois. Os pés, os dedos, dez, falanges, falanginhas, as unhas, dez. A planta. O corpo, a questão. O corpo maciço, sem órgãos, duro, gelado. Aparentando trinta e cinco anos, magro, branco. Preparo o equipamento de incisão. Luvas. Corto cuidadosamente uma das transversais das costelas, do pescoço ao abdômen, lado direito. A caixa torácica aberta em fatia. Pus. Amálgama. O corpo é maciço, gorduroso e não tem órgãos, está duro e gelado. Verte. Branco. Lanterna, luz. Viro o corpo de bruços, abre as nádegas e enfio meu dedo indicador no cu. Procuro. Nada. Viro novamente o corpo de costas para o chão, abro a boca, a língua roxa, os dentes, trinta e dois pretos, gengivas brancas. Enfio o dedo indicador na goela. Procuro. Nada. Só o plasma branco. Toda a caixa do corpo. Numeração. Transporte.

cartograma#22

ménage ao poetinha:
moro no Rio de Janeiro,
meu apartamento não tem banheira,
nem uísque.
Acabou-se a poesia
neste tom.

cartograma#21

Olho....pálpebra. Olho turvo.
o frio. o corpo deitado de lado,
a cama, os lençóis;
o cobertor lixando a pele o frio.
o calor do escroto saco sob as mãos entre as pernas coxas pêlos depois joelhos ossos e canelas e pés com frio com dedos duros nos pés com unhas arranhando riscando roxo de frio. e vento. o cobertor caído.
Olho....pálpebra.
Res-pi-ra-ção.
Olho grudado. Olho aberto de luz esvaída, longa e molhada.
Eu úmido entupido sinapse o ranho pigarro solto o ar e ele sai chiando fuinc da minha narina de cima. um motor acende debaixo do meu queixo. meus dedos apertam e fincam a palma da minha mão. a barba coça. a cabeça careca.
agora são dois Olhos. a luz vai encurtando, um zunido suspenso me faz pensar pela primeira vez onde eu estou....o criado mudo em madeira escura...a lâmpada de cabeceira com sua pequena haste dourada e a pantalha arredondada de tecido vermelho...o RayBan...a Bíblia aberta...um maço de cigarros......outra cama de madeira estendida com lençol amarelo e cobertor azul vazia...a mala aberta...as cuecas meias e toalha shampoo escova de dentes Colgate Gilette...a reprodução brilhosa da varanda deformada de uma casa rude com vista pro campo, moldura dourada barata, mural de estopa e serviço de quarto. que horas são? o spot duplo preto apagado, o teto diagonal quadrado, a transversal do armário embutido, portas escuras fechadas; a porta de entrada. paredes claras. Que horas são? ouço? isso é ar-condicionado?.... (parece que levei um tapão na orelha). tic-tac...outra onda de vento. minha boca trinca, áspera, a língua lixa por dentro no céu da boca, no dente, o cigarro Tártaro Bruxismo e Bafo.
lábios colados.
cadê o cobertor...? (porra!)
que horas são...? (Porra!)
que merda é essa?
(PORRA!)


O CORPO NÃO FALA.


NÃO SE MEXE.

[com Maurício O. Krebs]


cartograma#19




Um golpe só, véio. Eu só ouvi um golpe, só! E era som de golpe certeiro, com raiva, daqueles de cima pra baixo, fazendo uma volta. TUC!!! Toda a força num ponto só. Acho que foi coisa de profissional. Pobre do João. Coitado... As pessoas dão risada quando eu falo, mas acho que foi coisa meio de ninja: aqueles orientais que passam a vida inteira descobrindo a melhor forma de te colocar no chão sem que tu perceba. Ninja, samurai... Sei lá o nome dessa gente. Mas o negócio deles é eficiência. EFICIÊNCIA, cara! Nem sei quem pode ter sido; todo mundo gostava do João. Era parceria. Mas, nunca se sabe... Mas deixa eu te contar. Tava lá na Verinha, vizinha nossa, que mora embaixo do apê do João, ex-apê do João. A gente tava ouvindo um som, tomando uma ceva. Já era bem de madrugada... Batendo um papo, queimando um e tal. Falando nisso: já fumou aquele beck que o Alberto trouxe de Rio Grande? Bah... Primeira linha. Coisa fina. Ele tá com uma cara lá na casa dele. Bom, a gente tinha até passado no João pra ver se ele tava a fim: sabe que o João era parceria, né? E ele, tri estranho, disse que não e tal e que tinha que terminar um texto pra segunda e não sei mais o quê. Tá bom! Tá bom! Aí a gente ficou curtindo um Coltrane, fora da casinha, e, sabe aquela música que tem um paparapapapapáááá? Pois é. A fudê aquela música. Tem na caixa da Atlantic, aquela de cinco cd’s, no de sobras de estúdio e tal. E aí, bem na hora do paparapapapapáááá, a gente ouviu um TUC. Tipo: barulhão, só que daqueles meio surdo, sabe? Tipo surdão. Samba!!! Foi meio que paparapapapa... TUC!!! Bem no compasso. A gente achou aquilo meio estranho e tal, vinha do apê do João. Até achei que era a louca de baixo dando vassourada no teto pra gente desligar o som. Mas vinha de cima mesmo. Do apê do João. Daí a Verinha, que é toda atucanada e já tava na nóia quis subir pra ver se tinha acontecido alguma coisa. Saca que o João morava sozinho e tinha uns peripaque de vez em quando. Acho que o cara tinha uns lances de neurônio, tomava uns remédios aí... Dizem. Daí a gente subiu e tocou na campainha. E nada. E nada. Tocou de novo. E nada. Aí a Verinha se atucanou mesmo. Sabe como é mulher, né? Aí a gente desceu na portaria e pediu a chave do apê, que ela sabia que o João deixava com o cara pra qualquer emergência. Bah, cara!!! Tu chegou a ver o porteiro do edifício da Verinha? Cara!!! Que figura!!! O cara é igual ao Reginaldo Rossi, cara. Igual. Eu tive que me segurar pra não rir, meu. É bizarro. É dos piores, "CAMINHONEIRO", como diria a Virgínia. Daí a gente subiu lá, eu, a verinha e o Reginaldo, abriu a porta e encontrou o João na sala. Menos a testa dele, que a gente ia ter que procurar uns mil anos até achar. Ia ficar procurando até hoje. não existia mais, cara... Bah. Tava que era só miolo. Olhão esbugalhado. Sangue por tudo no chão. Aí foi gritedo, choradêra, vomitório, tudo... Bah... Mulher é foda!!! Ah! E a véia da vassoura gritando na janela pra gente calar a boca, é claro. O Reginaldo tremendo horrores e querendo chamar a SAMU... Vê se pode? O João ali, sem testa, e o pinta querendo chamar a SAMU. Sinistro... Bueno. Daí eu tive que tomar uma providência: botei um som, peguei uma ceva na geladeira, abri, tomei um gole e disse "Tá, vâmo dá um jeito na situação do presunto." Nessas horas o cara tem que manter a lucidez, porque sempre tem alguém pra cagar no patê. Mandei a Verinha pegar um saco de lixo bem grande, juntei o cutelo que tava jogado no tapete, do lado do João, e PAF PAF PAF: nem deu tempo de gritar e o Reginaldo já foi pra banha. Daí a Verinha se acalmou. É foda mesmo... Não curto esses lances na frente de estranhos. Aí fechamos a porta, fumamos um crivo e cortamos o João. Só não coube a cabeça no saco. O João era pequeninho, até... Aí a gente passou o resto da noite moendo ele naquelas maquininhas, como é o nome? Multiprocessador. Aqueles da ARNO que a Verinha tem. Aquilo. A gente até pensou em deixar pra comer o João com a gurizada, na parceria. Mas larica é foda, né? Larica é foda. Acabou rolando uma panqueca. Saca que panqueca é a larica perfeita, né? Tu esmurruga o bife e a seda é a massinha. Hehe. Mas não dá nada, o Reginaldo eu coloquei no freezer. Dá pra fazer um churras qualquer dia. É só combinar.

cartograma#18 - perspectiva

vem, ela dizia, tirando o lençol de cima do seu sexo, descuidada como só ela conseguia ser.
vem, e eu não ia. ficava observando a luz amarelada projetando sombras pálidas no quarto,
vem, escorado no batente da porta, sem o controle da situação, e ela, despretensiosa e sutil,
vem, no seu chamado, pedindo numa suplicante dor vazia. penso na fuga, tomar a distância.
vem, e a atmosfera das contradições é circulada pelo ventilador. na noite clara de verão, ela
vem...
e eu NÃO ia.
vem, ela dizia, parada à beira da cama desfeita. mandando, pecando, clamando. olho a luz e
vem, paro a repensar os meus pactos de honestidade, mutilados entre alguns minutos que só
vem, na conversação telefônica vazia de sentido, a jogar frases soltas no ar rarefeito, dizem
vem, eu não entendo, não quero, não gosto. ela manda, me quer perto, próximo, nela, então
vem, eu penso: não. e fico em silêncio, parado, observando o ridículo a nos cercar. todo dia
vem...
e eu NÃO vou.
vem, a cada dia, o seu suor, escorrendo pela testa, pelos seus cabelos, a molhar o corpo que
vem, é morbidamente preso à utopia fina, nutrindo, com imperfeição, a nossa vida solitária.
vem, não, de novo NÃO; há eras tem sido assim. nós, cegos, não acordamos pra ver quando
vem, eu morri. ela sabe, vê que não consigo, não posso. mas busca me prender, busca dizer
vem, brincando de sedução sem trazer à tona o que tem que ser trazido. todos sabem, vêem,
vem...
e eu NÃO quero.

[Seberi, data incerta]

cartograma#16

“Now I've said over and over again, that there's no such thing as a T.A.Z. that's only on the Net, and I maintain that that's true. In order to have autonomy, you have to have physicality. Autonomy is not something that can only exist in the imagination or in the world of images. I think that it involves the entirety, the whole axial being, and that is rooted in the earth and concerns physicality, materiality, the body, mortality, if you like, as contrasted to the spurious immortality of cyberspace.”

http://www.hermetic.com/bey/mwts_bey.html

cartograma#15

“TAZ-theory realizes that THIS IS HAPPENING- we're not talking about "should" or "will be"-we're talking about an already-existing movement. Our use of various thought-experiments, utopian poetics, paranoia criticism, etc., aims at helping to clarify this complex and still largely undocumented movement, to give it some theoretical focus and self-awareness, and to suggest tactics based on coherent integral strategies-to act the midwife or the panegyrist, not the "vanguard"!”

http://www.hermetic.com/bey/paz.html

cartograma#14

“L'erreur de Descartes, bien excusable il est vrai compte tenu des connaissances de l'époque, consistait à dire "je pense donc je suis", plutôt que "je suis donc je pense" (erreur d'ailleurs que beaucoup d'entre-nous perpétuent encore aujourd'hui...).
Mais dans son livre "L'Erreur de Descartes", Damasio va beaucoup plus loin en montrant que si l'on parle du corps comme support de l'esprit, il ne faut pas se limiter à examiner les informations produites directement par le cerveau, ni celles résultant du fonctionnement des organes sensoriels et moteurs. Il est désormais nécessaire de prendre en compte toutes celles résultant du fonctionnement du corps tout entier, présentes dans l'histoire des espèces dans les organisations les plus primitives. Les comportements les plus rationnels continuent, chez l'homme moderne, à se construire sur le soubassement de ce que Damasio appelle des "marqueurs somatiques", se traduisant par ce que l'on appelle généralement des émotions. Les viscères en général, les sécrétions endocrines, principaux générateurs de ces marques somatiques, manifestent en effet la réaction du corps tout entier à une situation donnée, et conditionnent la conscience que l'organisme prend de cette situation.”

http://www.admiroutes.asso.fr/larevue/2000/2/ldamasio.htm

cartograma#11 - materialismo hedonista

1. Materialismo hedonista:

Michel Onfray, a propósito de seu materialismo, resgatou o hedonismo como virtude libertária; além disso, contribuiu para resgatar o cinismo e a ironia como exercícios filosóficos. Em seu A Arte de Ter Prazer, empreende uma arqueologia da filosofia mundana, revelando entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Raoul Vaneigem[i].

O crivo nietzschiano de seu projeto está preocupado com os interesses filosóficos oblíquos às corporações régias e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento de sua moral comportada. Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria hedonista revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade da filosofia sem seus cruzamentos com a insubmissão e o prazer, homens e mulheres para quem os instantes fugidios da sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime.

Trazer esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes mundanas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser carne maculada por nossa condição demasiado humana; os usos do corpo estão submetidos aos registros da negação, da sujeição e do silenciamento das paixões através de diferentes formas de transcendentalismo e idealismo; além disso, toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais. O busto de Platão sob um pedestal de mármore, logo na entrada do museu das virtudes filosóficas oficiais, justifica tanto o preço dos ingressos quanto indica o caminho de entrada e a proibição de visitas descalças; os diversos guias especializados que se distribuem a cada nova sala confirmam – em italiano, alemão ou francês – as mesmas regras.

Os hedonistas não apenas utilizam uma ferramenta marginal às ferramentas filosóficas oficiais; não raro, toda sua vida é dotada de uma densidade marginal. Os trajetos que nosso intercessor revela apresentam a possibilidade de uma filosofia produzida não somente por grandes ilustres, tampouco por veneráveis estudiosos; mas uma filosofia hedonista produzida por toda sorte de devassos. “Na galeria dos hedonistas, encontram-se, com efeito, exibicionistas, bêbados, pederastas, sodomitas, monges e monjas atéias, músicos vagabundos, médicos exilados, libertinos presos, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão ou se batem em duelo, travestis que impregnam o corpo de perfumes. [...] Eles elegeram o banquete ou o cabaré contra a Academia ou a Universidade, a prisão ou a fogueira contra a Instituição ou a prebenda. [...] A ética torna-se uma arte de viver no cotidiano, longe da ciência absconsa das codificações castradoras.”[ii]

O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, em nada hedonista se não trouxer momentos de rebeldia, transe e gozo. Na extensão do projeto de Michel Onfray, contribuindo na composição desta galeria marginal cujos trajetos ele incita a resgatar, podemos encontrar uma filosofia mundana nos corpos-sem-órgãos de Antonin Artaud[iii], nos protomutantes de Thomas Hanna[iv], nos somas de Roberto Freire[v] e nos piratas e poetas terroristas de Hakim Bey[vi]; tantos outros ajudam a formar um extensivo bando de hedonistas cuja experiência marginal, ligada ao temperamento rompante, investe cotidianamente a vida de uma força estética que articula sabedoria filosófica, potência política e gozo; articula saber, poder e prazer. O projeto de uma arqueologia da filosofia mundana revelará aqueles que entraram descalços no museu das virtudes filosóficas oficiais, aqueles que percorreram suas salas não atrás das explicações de um guia treinado, mas de um exercício lúdico entre os tantos cruzamentos que este labirinto proporciona, para então rir e desencaminhar esta experiência de visitação, a despeito do busto de Platão.

Cada um a seu modo, ignorando os axiomas de rigor e os tratados da boa educação, os hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de instantes sublimes, onde a vida afirme sua potência no inusitado dos acontecimentos prazerosos; ele sobretudo deseja os acontecimentos prazerosos. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva do tempo, a fluidez das passagens, o hedonista não se contentará somente com desejar; mesmo que entenda a vida em sua infinita mutação e seu exercício cotidiano como constante aceleração, ele não abrirá mão de seus cristais de gozo, de suas experiências culminantes de autonomia temporária, bem como de todo o langor aí proporcionado. De outro modo, se a crítica deverá ser investida com uma índole de sacrifício, o bloqueio destas experiências culminantes, então o hedonista fará tudo menos uma crítica; ele será o filósofo da poética, do escárnio e da gargalhada entre o encadear dos instantes sublimes.

Esta perseverança ímpar no ser como busca dos instantes sublimes é seu ato de resistência ao interesse ascético, civilizatório; as infinitas folhas da enciclopédia civilizatória serão usadas da maneira mais inconseqüente, não raro servindo para limpar mãos e bocas sujas de fluidos e temperos no fragor das comemorações; o hedonista fará sempre um piquenique na sala dedicada à Descartes, estourará champagnes na sala dedicada à Kant e pichará mensagens anti-nazismo na sala dedicada a Heidegger. Uma arqueologia da filosofia mundana confunde-se com as estórias de arrebatamento que consegue suscitar, ali onde toda crítica vem numa nova sensação, numa nova posição radical; ali onde toda nova intuição servirá de nova charada às esfinges, propondo cenários que aparecem-lhes como irresponsáveis, egoístas ou mentirosos, delirantes ou obscenos. Propondo-lhe um corpo rebelde que nega toda forma de sacrifício para fazer de si mesmo uma obra de arte.

O hedonista não deverá somente contar ou descrever grandes cenários, senão tê-los vivido especificamente. Em seu cotidiano, deverá descrever as grandes estórias de suas errâncias, mas também experimentá-las contra todas as estórias de tédio e timidez; tomando o corpo e a vida como instrumentos da experimentação, o filósofo hedonista não deverá somente ler, refletir e escrever, mas também beber o quanto puder[vii].

O exercício deste tipo de filosofia normalmente é feito desde a condição de estrangeiro; não raro o hedonista emitiu desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de tutela. Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices[viii]. Mas o hedonista será, antes e sempre, um solitário; mesmo entre cúmplices, sua solidão-sem-mágoa[ix] mostrará que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Para o hedonista, só será possível a dignidade de rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tivermos o hábito de dar forma de arte à vida; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[x].

[extrato de artigo inédito, 2005.]


[i] Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Monica Stahel. p.227-311.

[ii] Idem, p.235-236.

[iii] Antonin Artaud. “Para terminar com el juicio de Dios” in Paginas Escogidas. Buenos Aires, NEED, 1997. tradução Sara Irwin & Mirta Rosenberg. p.193-229.

[iv] Thomas Hanna. Corpos em revolta (uma abertura para o pensamento somático), Rio de Janeiro, Edições Mundo Musical, 1972.

[v] Roberto Freire. Utopia e paixão. Rio de Janeiro, Guanabara, 1984.

[vi] Hakim Bey. CAOS – Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo, Conrad, 2003. tradução Patricia Decia & Renato Resende. & TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo, Conrad, 2001. tradução Patricia Decia & Renato Resende.

[vii] Guy Debord. Panegírico. São Paulo, Conrad, 2002. tradução Edson Cardoni.

[viii] Gilles Deleuze. ‘Desejo e Prazer’ in Cadernos de Subjetividade, PUC/SP. jun.1996. p.15-25. tradução Luiz B. L. Orlandi.

[ix] Roberto Freire. ‘Que cada um se antene enquanto é tempo’ in Viva eu Viva tu Viva o rabo do tatu! São Paulo, Símbolo, 1977. p.121-122.

[x] Michel Onfray. ‘Estética: pequena teoria da escultura de si’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.65-101.

cartograma#11 - novos manifestos

3. Pela invenção de novos manifestos:

Ombro a ombro entre toda sorte de excessivos, caluniadores, cínicos e irônicos, entre devassos e loucos, toda sorte de gente bandida e transtornada, não raro trazendo em si um pouco de cada um deles, emergirá o fabuloso hedonista, aquele que entrará na história da filosofia como quem entra no hipócrita jogo das verdades com um martelo. Quando conseguir a abolição da ascese filosófica sisuda a alimentar a economia dos maus hábitos, então poderá angariar especialmente as atitudes oblíquas e os exercícios prazerosos, a alegria da convivência e a espessura dos inebriantes encontros; poderá angariar alguma filosofia e algumas marteladas.

O crítico se colocará com distância; e mesmo alguns genealogistas ou cartógrafos o farão. A escrita é tomada como o último requisito da ascese filosófica, servindo de principal operador nas suas principais cerimônias; ela merece distância. As cerimônias onde o escritor cumpre o dever de tornar público seu argumento são ocasiões no mais das vezes oficiais, embora às vezes também oficiosas; são muitas vezes pomposas, não raro acontecem em salas fechadas no interior das corporações régias e burguesas. Nas cerimônias, é necessário apresentar a conclusão de uma trajetória filosófica segura, assim como a brecha evidente que cada qual escolheu para atracar; deseja-se escrutinar as habilidades do escritor neste movimento de ancoragem, para então sondar com qual grau de segurança ele será capaz de operar em terra firme, já tendo dominado determinado espectro de palavras de ordem[i].

Ao chegar no final de uma ascese deste tipo, de acordo com o que se espera de uma escrita como enlace de uma trajetória, é requerido um trabalho de revisão bibliográfica onde se encontre uma articulação dos conceitos e teorias previamente dados e avalizados, escolhidos dentro do complexo leque das interpretações existentes; e delineamentos tanto de uma epistemologia que resguarde a veracidade de seu trabalho quanto de uma metodologia que contemple uma boa maneira de conhecer os alicerces de suas afirmações. Um terceiro ponto e um quarto ponto ainda são solicitados: sobre esta base que se pretende sólida, que o asceta disponha com clareza as informações que juntou durante sua trajetória e forneça uma articulação final, interpretação que se pretende no mínimo válida e no limite verdadeira. Entre estes quatro pontos fundamentais, é requerida uma coerência que ligue e faça operar conjuntamente conceitos, pressupostos epistemológicos, estratégias metodológicas e conclusões.

Muito bem que assim o seja.

A escrita hedonista, desinteressada do tédio das cerimônias oficiais, é antes um golpe de martelo no disparate[ii], entrada entusiástica no jogo das verdades. O asceta termina sempre numa argumentação inteligível e bem concatenada, a língua selvagem domada na construção de um argumento entre quatro paredes. Já o hedonista reencontra-se sempre sobre os abismos de si e do mundo, nos limites de qualquer visibilidade ou enunciação, é equilibrista entre as fronteiras, malabarista dos limites; deambula entre abismos como quem dança em um campo minado. O hedonista filosofa em campo aberto, “ele permanece no instante, para desempenhar alguma coisa que não pára de se adiantar e de se atrasar, de esperar e de relembrar. [...] Esta efetuação cósmica, física, ele a duplica com outra, à sua maneira, singularmente superficial, tanto mais nítida, cortante e pura por isso mesmo, que vem delimitar a primeira, dela libera uma linha abstrata e não guarda do acontecimento senão o contorno ou o esplendor: tornar-se o comediante de seus próprios acontecimentos, contra-efetuação[iii].

Se suas imagens não revelam o foco de lindas paisagens vistas do topo de uma ravina, tampouco revelam os positivos de uma trajetória ascética, é porque revelam quedas e transmutações, imagens em movimento. O hedonista reencontra-se sobre os abismos porque a escrita só lhe interessa enquanto cartografia das quedas, autobiografia do tempo em seus instantes sublimes, cenários vividos na urgência das leis da gravitação. Em seus manuscritos ao vento, a última página solta de Gilles Deleuze não trataria dos grandes conjuntos do marxismo; não fosse uma Terra tão pouco continente com seu sufoco, nosso intercessor teria ainda respirado ar fresco uma última vez, e lançado uma derradeira palavra poética sobre o que passa nos momentos de um homem em derradeiro vôo, religando céu e terra no corpo, o derradeiro instante de arrebatamento onde mata-se toda a morte. Um corpo em convulsão na esquina de inflexão da história, inteiramente marcado por sua presença, inteiramente arruinado ou doido por ela[iv].

Não haverá escrita possível entre a estética das cerimônias e seus manuais de redação; esta claustrofobia deve ter fim. O hedonista rasga o sentido da norma, rouba, repele e recusa seus ardis; abusa da primeira pessoa e não tem medo nem das palavras que se repetem, tampouco de sonoridades que confundem. Escreve um texto para ser lido em voz alta entre amigos[v], um epitáfio fabuloso que investirá de vontade o carnaval de seus funerais. A escrita hedonista não poupará a expressão, mas evitará os chavões; de quando em vez, fabricará parágrafos de uma só frase e cometerá sua repetição; inventará palavras e lançará mão de subtítulos que ajudam na passagem direta ao ato. E sempre dobrará a surpresa de uma esquina antes de qualquer novo argumento.

O hedonista escreverá sentado na chuva e não explicará seus porquês; será largado e irresponsável sobre a folha que espia. Acreditará nas onomatopéias e descobrirá as mais humanas, destacando seus gritos e grunhidos urgentes sob o rumor infernal da história. Entregará sua escrita à gravitação, mas terá imprimido suas marcas somente em papel laminado, com claras instruções para que cada página seja lida ao grande sol de meio-dia. Será de sua preferência apagar os rastros enquanto viaja no tempo, permanecendo solto do espaço, em trabalho clandestino, porém meticuloso.

A escrita hedonista é dada à fabulação: a fabulação como exercício dotado de virtude rebelde, quando tanto mais fabulosos forem os instantes de uma vida única, mais feroz será sua filosofia crítica. A seriedade e a preocupação com as últimas conseqüências da verdade serão motivo de seu escárnio; “a espelunca, o cabaré, a taberna se alçam à dignidade de lugares filosóficos. Submersos em montes de perdizes assadas, evoluindo entre mulheres afáveis, grandes consumidores de vinho fresco, os eruditos libertinos se encontram, escondidos do poder que persegue os marginais, para rir, beber, comer, traquinar, mas também escrever versos subversivos, trocar idéias progressistas, ironizar o velho mundo que se trata de destruir: [...] os libertinos optam pelo efeito desconstrutor do humor, do cinismo e de todas as versões do recurso à caçoada.”[vi]

É preciso ter muito cuidado: o poder régio gosta dos exercícios fabulosos, mesmo que somente num sentido reacionário; engendrado de diferentes maneiras desde a Idade Média até a pós-modernidade, o poder régio é interessado nas fábulas como instrumento de fixação das façanhas e das peripécias ostentosas de suas figuras emblemáticas, na fixação de suas caricaturas monstruosas ou no fetichismo de uma intimidade sórdida escondida nas sombras do cotidiano. As fábulas do poder régio sustentam luxos e índoles autoritárias, prazeres vis. Mesmo que seja preciso atentar para os interesses, não caberá debruçar-se novamente sobre o quê Michel Foucault já debruçou-se[vii].

Interessa ao hedonista especialmente o sentido psicopatológico da fabulação; o exercício psicopatológico de falsificação importará mais do que a significância ou a fixação de protagonistas numa grande estória qualquer. A comédia, a charada e o chiste interessam como arranhões anárquicos na história, atitudes deliberadas de escárnio ao contar estórias à tradicional, ao desejar a história e a filosofia à tradicional como desejam aqueles que arquitetam a cirurgia porcina de Abelardo[viii].

Assim como os comediantes de Henri Bergson[ix], o hedonista revelará em seus golpes a comicidade dos artefatos do presente, indicando os limites das engrenagens ou os automatismos em sua dinâmica, suas categorias de semelhança e suas monstruosidades; revelará um cotidiano fabuloso e risível ali onde as derivadas mecânicas tentavam capturar toda a história em seu momento de inflexão, acontecimento.

[extrato de artigo inédito, 2005.]



[i] Gilles Deleuze & Félix Guattari. ‘20 de novembro de 1923 – Postulados de lingüística’ in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.2. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995. tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. p.11-59.

[ii] Michel Foucault. ‘Nietzsche, a genealogia e a história’ in Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1999. tradução Roberto Machado. p.18.

[iii] Gilles Deleuze. ‘Viségima primeira série: Do Acontecimento’ in Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva, 2003. tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. p.155.

[iv] Michel Foucault, idem. p.22.

[v] Michel Onfray. ‘Patética: geografia dos círculos éticos’ in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. tradução Mauro Pinheiro. p.141-186.

[vi] Michel Onfray. ‘Virtudes’. in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. idem. p.261.

[vii] Michel Foucault. ‘Aula de 28 de janeiro de 1976’ in Em Defesa da Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999. tradução Maria Ermantina Galvão. p.75-80

[viii] Michel Onfray. idem. p.229-233.

[ix] Henri Bergson. O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2004. tradução Ivone Castilho Benedetti.