Bicho. Mas imaginamos que, no mais ancestral, está a nossa animalidade.
O bicho-homem.
Imenso enxame de gente que cobre o mundo, bichos brancos, bichos pretos, bichas amarelas e toda a sorte de bichas mestiças, feições distintas, silhuetas díspares, singularidades informais, tanta beleza e tanta briga de raças. Imenso mundo onde ninguém é igual, lindo e múltiplo mistério humano que não haveremos de deixar acabar. Riscam em setas trajetos hipotéticos que percorrem e remontam nossas origens e errâncias pelos cinco continentes. Oriente do Ocidente ou Ocidente do Oriente? Dizem que atravessamos mares, percorremos rios e transpassamos as mais desafiadoras cordilheiras; que lutamos contra as feras e que fomos feras quando a guerra pareceu-nos o festival de boas-vindas. Prodigiosas façanhas. Em choças ou mesmo ao ar livre, amamos uns aos outros e até outros daqueles que viviam entre os demais. Que expliquem o amor pela genética, isso lá é problema deles. Ainda andávamos descalços, sem ciência. Procriávamos. Vivíamos. Animais nômades, depois territoriais. Depois tudo o que já conhecemos, ou tudo que interpretamos.
Numa fábula ancestral, penso haverá de ter um único e primeiro bicho humano, o elo perdido, mas ele deverá ter nascido de uma outra raça, mas de duas outras espécies diferentes: o elo perdido deve ser mesmo um casal improvável, a mestiçagem original, uma cópula entre as espécies com troca de propriedades essenciais. O elo perdido são núpcias entre dois reinos.[i] Seríamos somente um galho também caótico dentro do embate entre os reinados.
Mas imaginamos que a direção antropocêntrica é toda uma nova direção do cerne, do caule da grande história natural. Refestelamos. Cara a cara no espelho, embriagados de nós, nem mesmo pensamos que podemos ser a decadência dos macacos. Terão os símios reinado ou voltarão a reinar no futuro, quando estivermos de volta ao planeta dos macacos? Toda a civilização torpe não é nada frente à imensidão do tempo e do espaço vital, estúpida e primitiva imanência que embala tudo e que tudo mistura na mesma matéria sem dar-se a sabe quem ou que é.
O humano é só uma pincelada. Um risco fraco em superfície lisa.
E cretino: ainda tentará levar tudo consigo!
O narcisismo antropocêntrico empreende nosso destacamento como raça superior, como reinado superior, e nisso é também é nossa forma mais arraigada de racismo. Prendemos os símios em zoológicos talvez como prendamos os velhos em asilos, os loucos em hospícios, os bandidos na cadeia e as mulheres na cozinha. Assim como jogamos nosso lixo para fora dos limites da cidade, lá para perto de onde ficam os desamparados que ainda fazem sopa com a lavagem dos porcos, outra categoria de gente que preferimos manter longe dos nossos olhos demasiado humanos. Fugimos do espelho da nossa própria decadência transformando a crueldade da realidade em fator de exposição. A fantasia da nossa redenção termina por completo com a possibilidade de olharmos as evidências mais reais da nossa vida coletiva, e seus resultados.
No fim, o que nos resta é só um corpo.
E já é muito.
[i] Ver: Gilles Deleuze & Claire Parnet. “Uma conversa, o que é, para que serve?” in Diálogos. op. cit.
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