23.6.09

Hedonistas

Hedonistas. Em seu A Arte de Ter Prazer, a propósito de uma discussão sobre o materialismo hedonista, Michel Onfray empreende uma arqueologia da filosofia mundana. Em sua arqueologia, acaba por revelar entre os suntuosos cômodos do grande museu das virtudes filosóficas oficiais o rumor de uma nova galeria marginal: a galeria dos devassos. Desde os cirenaicos, passando pelos gnósticos licenciosos e pelos Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, por Sade, Charles Fourier e La Mettrie, sua galeria marginal chega até contemporâneos como Guy Debord e Raoul Vaneigem.[i]

O crivo de seu projeto pessoal é uma preocupação anárquica e meticulosa em resgatar os interesses e as práticas filosóficas oblíquas aos interesses e práticas filosóficas sustentadas pelas corporações régias, religiosas e burguesas; senão com os interesses oblíquos, com as atitudes de real e cotidiano afrontamento a todas as suas leis mais ou menos estabilizadas. É com este crivo que Michel Onfray procura seus cúmplices, e para tanto precisa notabilizar e resgatar não só pensamentos insubmissos, mas métodos radicais: o cinismo e a ironia reaparecem como métodos filosóficos, bem como todo tipo de chiste ou charada, de escárnio ou protesto ativo.[ii]

Os trajetos que nosso intercessor resgata nesta galeria maldita revelam a história de homens e mulheres que não compreendiam a possibilidade de existir pensamento sem os seus cruzamentos com a experimentação e o prazer; homens e mulheres para quem os instantes fugidios de sabedoria aconteciam em co-extensão com os instantes culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, muitas vezes com os instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime. Os malditos hedonistas têm uma perseverança que não é da ordem do pensamento analítico, tampouco da ordem do saber sistemático. Todo maldito precisa antes de tudo forjar novos métodos, os seus próprios, e para qualquer maldito o ato de forjar novos métodos é principalmente uma questão de forjar atitudes que reafirmem a potência que percebe na vida em cada um dos seus instantes sucessivos.

A potência de uma vida é o que lhe faz digna de ser vivida.

É na potência de uma vida que reside a possibilidade do prazer.

Nesta outra galeria, os malditos lançam mão de outros procedimentos ou programas, e talvez nem lhes seja conveniente ou adequado seguir falando de um método. Certamente seria melhor dizer de um não-método, de uma estratégia ou falar simplesmente da afirmação do charme de uma trajetória: “O charme, fonte de vida, [...] é o que faz apreender as pessoas como combinações e chances únicas que determinada combinação tenha sido feita. [...] Por isso, através de cada combinação frágil é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança ímpar no ser.”[iii]

Ao percorrer novamente esta galeria marginal ao museu das virtudes filosóficas oficiais, Michel Onfray acaba por revelar que uma história comportada da filosofia é somente outra de suas estórias mal contadas ou contadas à metade. Não bastasse uma nova qualidade para os métodos, ele apresenta toda uma nova possibilidade de lugares onde a filosofia pode ser exercida: em se tratando dos malditos hedonistas, ela também acontece nos banquetes, nas bebedeiras, nas viagens e errâncias para lugares distantes e desconhecidos; e também nas alcovas, ali onde se desenrolam as grandes histórias de amor e sensualidade. “A espelunca, o cabaré, a taberna se alçam à dignidade de lugares filosóficos. Submersos em montes de perdizes assadas, evoluindo entre mulheres afáveis, grandes consumidores de vinho fresco, os eruditos libertinos se encontram, escondidos do poder que persegue os marginais, para rir, beber, comer, traquinar, mas também escrever versos subversivos, trocar idéias progressistas, ironizar o velho mundo que se trata de destruir: [...] os libertinos optam pelo efeito desconstrutor do humor, do cinismo e de todas as versões do recurso à caçoada.”[iv]

Apresentada num longo texto em papel timbrado, uma história comportada da filosofia está permeada por todo um procedimento meticuloso que procurou marcar suas partes malditas sob o signo da destemperança, revelando frente a este negativo monstruoso a possibilidade de uma única luminosidade ascética, elixir filosófico. Na história comportada da filosofia, o corpo passa a ser só carne maculada por nossa condição demasiado humana: os usos do corpo estão submetidos aos registros da utilidade, do engajamento e do silenciamento; toda e qualquer virtude dissidente deve ser abolida em favor de contratualidades consensuais que favoreçam a polidez social; as paixões são coisa frívola frente às diferentes formas de idealismo e racionalismo; o prazer não faz parte. A figura do grande filósofo já é imortalizada: desde Rodin, ele está sentado, o cotovelo apoiado no joelho, o punho fechado escorando o queixo, a grande cabeça que pende a segurar o cenho franzido.

Do filósofo original nasceram todos os pensadores tradicionais.

“Le Penseur de Rodin... coitado... nunca se viu ninguém fazendo tanta força para pensar!”[v] – mas o avatar da filosofia não é uma cadeira, tampouco um punho cerrado sob o queixo. É preciso evitar Rodin. Mesmo que tenha sido esculpido para outra porta, hoje ele jaz sentado junto ao busto grego de Platão como seu correspondente renascentista, ambos na entrada do museu das virtudes filosóficas oficiais, museu esse que celebra as glória do espectro homem. À moda dos solenes anfitriões, ambos guardam a porta, justificam com sua presença o preço dos ingressos, fornecem o protocolo de proibições e indicam guias treinados em línguas latinas e germânicas. Em dias de sorte, dependendo do horário e da estação do ano, avisam também da presença da Verdade, a faxineira, e então o alvoroço é geral.

Filosofia à moda anárquica, os malditos fazem porque não apenas projetam uma ferramenta dita marginal como vivem-na com uma densidade especialmente provocadora. Os trajetos que Michel Onfray revela apresentam a possibilidade de uma filosofia produzida não somente por grandes ilustres, suas cadeiras e cenhos franzidos, mas também uma filosofia feita por toda sorte de hedonistas que teimam não conceder ao pensamento os privilégios que lhe conferem as instituições de tutela: “na galeria dos hedonistas, encontram-se, com efeito, exibicionistas, bêbados, pederastas, sodomitas, monges e monjas atéias, músicos vagabundos, médicos exilados, libertinos presos, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão ou se batem em duelo, travestis que impregnam o corpo de perfumes. [...] Eles elegeram o banquete ou o cabaré contra a Academia ou a Universidade, a prisão ou a fogueira contra a Instituição ou a prebenda. [...] A ética torna-se uma arte de viver no cotidiano, longe da ciência absconsa das codificações castradoras.”[vi]

Uma arqueologia da filosofia hedonista fará com que todos estes tipos sórdidos ressurjam como um rumor no buraco negro da memória oficial, e fará aparecer toda sorte de tipos transtornados exercendo uma filosofia limítrofe, radical e explosiva, tanto mais maldita quanto mais conseguir cruzar momentos culminantes de rebeldia, satisfação e gozo, talvez instantes radicais de insubordinação, amoralidade ou crime. Uma filosofia tanto mais maldita quanto mais ligada aos temperamentos rompantes que investem cotidianamente na vida com uma força que articula sabedoria filosófica, potência política e prazer, que articula saber, poder e prazer.[vii]

Cada um a seu modo, normalmente ignorando os axiomas de rigor e os tratados de boa educação, os malditos hedonistas entregam-se ao exercício de uma filosofia dedicada à composição de experiências sublimes. Se o desejo indica tão somente a ubiqüidade produtiva da vida, os malditos hedonistas querem mais: mesmo que entendam a vida em sua infinita produção e seu exercício cotidiano como constante mutação, é preciso ter as experiências tragicamente culminantes, é preciso cristais de gozo, o tesão no aqui e no agora. De outro modo, se a ascese filosófica e mesmo a crítica devem ser investidas com uma índole de sacrifício, o cenho franzido em favor de um caminho ascético ou científico, então o maldito hedonista fará tudo menos uma ascese ou uma ciência: ele será o filósofo da poética e do escárnio apresentando a perseverança ímpar na vida como maior ato de resistência ao interesse civilizatório.

Seu exercício consiste não em propor grandes teorias, mas em contar ou descrever grandes cenários que ele viveu especificamente. Em seu cotidiano, precisa descrever as grandes histórias de errância, mas também experimentá-las contra todas as histórias de tédio e timidez. Ele precisa saber que não basta somente ler, refletir e escrever, mas também dançar e beber o quanto puder.

As infinitas folhas da enciclopédia civilizatória são usadas pelos malditos hedonistas de forma inconseqüente, não raro servindo para limpar mãos e bocas no fragor das comemorações. Histórias de arrebatamento conseguem suscitar uma filosofia que não tem par em nenhuma outra que seja fruto dos métodos tradicionais encontrados na leitura de quaisquer dos manuais do Grande Poder. Para os hedonistas, toda filosofia e toda possibilidade de alguma ciência vêm numa nova sensação, surgem de uma nova posição radical e geram uma circunstância outra para o pensamento. Uma filosofia e uma ciência onde toda nova intuição servirá de charada primeiro para si e depois para as esfinges.

Uma arqueologia maldita procura aqueles que entraram descalços no museu das virtudes filosóficas oficiais, aqueles que percorreram suas salas não atrás das explicações de um guia treinado, mas de um exercício lúdico entre os tantos cruzamentos que este labirinto proporciona, para então rir e desencaminhar esta experiência de visitação, a despeito do filósofo sentado ou do busto de Platão.

Seus excessos são criticados até por alguns cúmplices.[viii]

Mas, mesmo entre cúmplices, ele desejará mostrar que sobre cada um dos instantes de si mesmo estará comprimida toda a consistência do mundo, e que seu corpo é um conjunto de tensões e articulações sempre em vias de explosão; o maldito hedonista é sobretudo um artista destas energias que atravessam o corpo, um estrategista das formas em estado nascente, um domador da vontade que procura transpor todos os limites que impedem que sua radical individualidade produza toda uma existência como obra de arte instantânea. Não raro, emitiu sua filosofia desde calabouços e prisões, em meio ao calor das fogueiras ou à correria das perseguições; não raro desde dentro dos catálogos psiquiátricos ou arrebatado pela loucura no interior das instituições de controle e tutela. Algumas vezes teve que escrever com sangue. Como no caso dos terroristas, os malditos hedonistas também são perigosos: é que um pouco mais de felicidade em nossa vida e colocamos à vista de todos uma outra e nova possibilidade, e nisso há uma faísca de ferocidade que pode facilmente atear fogo no cotidiano.

Para o maldito hedonista, só será possível rasgar os limites que protegem a vida dos inusitados encontros com a felicidade genuína quando tratarmos a vida de forma digna e tivermos o hábito de dar-lhe forma de arte; engana-se quem pensa que este hábito não é um exercício prazeroso, o corpo como escultura hedonista de si, monumento ao instante[ix].



[i] Ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p.227-311.

[ii] Michel Onfray vem redigindo vários tomos de uma contra-história da filosofia. Os originais já apresentam oito volumes, e já temos tradução dos dois primeiros, aqueles que tratam, respectivamente, das sabedorias antigas e do cristianismo hedonista. Ver: Michel Onfray. Contra-história da Filosofia Vol.1 – As sabedorias antigas & Contra-história da Filosofia Vol.2 – O cristianismo hedonista. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Para os demais tomos originais em francês, procurar no catálogo da Ed. Grasset, de Paris.

[iii] Ver: Gilles Deleuze & Claire Parnet. “Uma conversa, o que é, para que serve?” in Diálogos. op. cit. p.13.

[iv] Ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.261.

[v] Ver: Mário Quintana. “O dificultoso” in Caderno H. São Paulo: Globo, 2006. p.247.

[vi] Ver: Michel Onfray. Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.235-236.

[vii] Sobre as articulações entre saber, poder e prazer a partir de uma perspectiva hedonista, ver: João da Mata. Prazer & Rebeldia – O materialismo hedonista de Michel Onfray. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

[viii] “Não posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazer parece-me interromper o processo imanente ao desejo; o prazer parece-me estar do lado dos estratos e da organização; é no mesmo movimento que o desejo é apresentado como submetido de dentro à lei e escandido de fora pelos prazeres; nos dois casos, há negação de um campo de imanência próprio do desejo”. Ver: Gilles Deleuze. “Desejo e prazer” in Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. vol.1. n.1. 1993. p.22.

[ix] Ver: Michel Onfray. “Estética: pequena teoria da escultura de si” in A Escultura de Si. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. p.65-101.

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