22.6.09

Psicologia pra quê?

Psicologia pra quê? Uma seleção de Manuais de Introdução à Psicologia parece concordar com a possibilidade de uma definição geral. Vejamos: Clifford Morgan[i], por exemplo, diz que a “psicologia é a ciência do comportamento humano e animal”, algo que ele faz questão de diferenciar tanto da filosofia quanto da arte, isso por conta de seu caráter científico; Maurice Reuchlin[ii] diz que “o psicólogo (...) se propõe a descrever e explicar os comportamentos dos organismos”, e diz também que “ele [o psicólogo] alimenta a ambição de empregar, para fazê-lo, métodos suscetíveis de, tanto quanto possível, satisfazer os critérios gerais do método científico”; Rita Atkinson[iii] diz que “a psicologia pode ser definida como o estudo científico do comportamento e processos mentais”, alertando que “uma variedade estonteante de tópicos é coberta por esta definição”; Donald Hebb[iv] diz que a psicologia define-se “como o estudo das formas mais complexas de integração ou organização do comportamento”, entendendo que o estudo da organização do comportamento implica o estudo de processos nem tão visíveis quanto o que é manifesto, tais como a aprendizagem, a emoção e a percepção; Calvin, Lindsay e Thompson[v], depois de alertar que talvez nenhum outro curso prometa mais e dê menos, dizem que “para o psicólogo, a psicologia é o estudo científico do comportamento” e que “comportamento compreende eventos externos e facilmente observáveis, bem como eventos que apenas podem ser inferidos indiretamente a partir de relatos verbais ou de indicadores fisiológicos”; Maria Teles[vi] diz que “psicologia é a ciência que estuda o comportamento dos organismos vivos e, no caso do ser humano, de sua experiência” – “a experiência humana se resume, em grande parte, no armazenamento de comportamentos, atitudes, reações e vivências do passado” que serão traduzidos no presente como possibilidades de vida. Linda Davidoff[vii], e lembro que foi este o Manual que eu mesmo usei no início dos meus estudos, diz que “hoje a psicologia geralmente é definida como a ciência que se concentra no comportamento e nos processos mentais – de todos os animais”, fazendo questão de também ecoar a virtude científica de seu exercício.

Uma definição geral da psicologia é esboçada.

Pelo menos na seleção que pesquisei, esta definição articularia, em primeiro lugar, um interesse em desvendar o comportamento em pelo menos duas esferas – humana e animal. Entre as diferentes nuances desta definição, podemos integrar elementos como a aprendizagem, a emoção ou a percepção, as atitudes, as reações e as vivências, as condutas, os processos mentais e os indicadores fisiológicos dos organismos vivos humanos e animais. Em segundo lugar, uma definição geral da psicologia articula um interesse propriamente científico e, conseqüentemente, demanda um conjunto de esforços pelo método científico.

A concordância preliminar quanto a uma definição geral do que seja a psicologia, porém, não passa na prova da historiografia: no clássico Manual de História da Psicologia de Duane e Sydnei Shultz, por exemplo, depois de algumas digressões sobre os antecedentes filosóficos da ciência psicologia, encontramos elementos que matizam nossa definição geral um pouco mais, e nisso nos fazem perguntar se as tentativas de circunscrição dos Manuais anteriores serão suficientes. Através de Titchener (1867-1927), teórico da escola estruturalista, o Manual diz que o objeto de estudo da psicologia seria a experiência consciente; através de James, teórico da escola funcionalista, diz que seu objeto de estudo são os fenômenos – “aquilo que está presente na experiência imediata” – e suas condições – “as subestruturas físicas que a condicionam”[viii]; através de Watson (1878-1958), teórico da escola comportamentalista, diz que o objeto de estudo da psicologia é o par estímulo-resposta no comportamento manifesto; através dos teóricos da psicologia da gestalt, diz que o objeto de estudo da psicologia são as constâncias perceptivas, a organização da percepção e a aprendizagem; através de Freud (1856-1939), diz que a psicologia trata das formações inconscientes. Se seguirmos capítulo a capítulo, e nisso passarmos tanto por estas quanto pelas outras escolas apresentadas página a página, e mais detidamente, veremos que a principal característica da história das práticas psicológicas é uma proliferação feroz de definições, uma proliferação atroz tanto de escolas como de teóricos, teorias e conceitos que a historiografia só consegue extrair num mosaico nada unitário.

Mais sagazes, alguns historiadores da psicologia já deixaram de procurar seu estatuto geral, subtituindo esta pretensão de unidade por outra, a pretensão de linearidade na sua suposta evolução da psicologia. É interessante como através da linha de tempo marcada pela passagem do tempo cronológico a historiografia apresenta desde os precursores aos vanguardistas, e nisso parece organizar a história da psicologia desde o mais rudimentar até o mais sofisticado. O contexto da psicologia, porém, não nos apresenta uma evolução linear no rumo de um estatuto fundamental senão um ótimo caso para que atualizemos as discussões já feitas sobre as durações múltiplas: à medida que a psicologia persiste, o que vemos é o surgimento de escolas sobre escolas, a profusão de embates sobre embates, a colocação de questões sobre questões, a geração de polêmicas sobre polêmicas, tudo isso ao ponto de estarmos já pela boca do saco de tão abarrotados de estatutos sempre precários. Cada nova escola propõe um arranjo de duração própria, e ele valerá enquanto valem os problemas que ela apresenta, e seus operadores.

Outra feita objetaram que os Manuais de introdução ou historiográficos utilizados nesta breve apresentação datam de décadas atrás, e que uma tese de doutoramento não deveria ancorar-se em referenciais com este grau de antigüidade, isso porque já podem estar desatualizados ou até ultrapassados pelas discussões mais recentes cuja sofisticação seria proporcional aos últimos avanços civilizatórios. Digo que concordo com tal objeção, e caso o objetivo da tese fosse fazer uma discussão exaustiva sobre o estatuto da psicologia, certamente deveríamos dispor de outros referenciais; isso, porém, justificaria uma tese de doutoramento inteira. Nesta sessão, porém, só cabe afirmar que a psicologia não tem um estatuto próprio; o que ela tem, isso sim, é um conjunto de estatutos extremamente precários, e é possível que alguém afirme que ela não tem estatuto nenhum, que surge numa disputa entre estatutos diversos, e que esta discussão exaustiva e sofisticada sobre o que a define e delimita leva cada vez mais ao fundo de uma rua sem saída e cada vez mais abarrotada de gente, ou para lugar pior.

Em sentido contrário à objeção, porém, digo que os Manuais são as referências que encontramos quando procuramos pelas rubricas introdutórias e historiográficas junto aos terminais de consulta da rede de bibliotecas da universidade, e a julgar pela grande freqüência de retirada destas obras – fato que a ficha de retirada à contracapa não deixa desmentir –, suspeito que ainda são esses os livros usados quando da formação dos novos profissionais. Sua atualidade pode não ser conceitual, mas eles ainda funcionam quando o intuito é a formação universitária atual.

Alguns psicólogos e algumas psicólogas resolvem este problema de definição da psicologia aderindo ao que conhecemos como psicologia social, e daí vem grande parte da cepa crítica contemporânea. Assim, haveria um conforto ao dizer que o Social – ou variações acerca do tema, como seriam as relações sociais, por exemplo – definiria uma psicologia, uma psicologia propriamente social, assunto bastante recente no Brasil. Supõe-se que o problema da definição da psicologia fica solucionado porque a noção do Social parece suficientemente clara e evidente, e nisso ela pode designar tanto um objeto de estudo quanto uma escola de psicologia, ou ambos; não raro, também designa uma relação com as virtudes científicas. Mas acrescentar o qualificativo social à psicologia, porém, não criaria e nem criará uma espécie de refúgio seguro em meio à difusão; é um duplo engano. Quando falamos de uma psicologia social, antes de resolvermos o problema da difusão da psicologia, dando-lhe a especificidade de um objeto de estudo, duplicamos o problema primordial: se a univocidade em torno do que trata a psicologia é ausente, também é em torno do que supõe a noção do social.[ix]

Duplica-se, triplica-se, enfim, o problema da difusão.

A psicologia não encontra descanso com sua definição, tem um objeto genérico de estudo cuja não-evidência não permite uma totalização e uma história completamente recortada de embates que não podem encontrar uma solução comum. Já falamos até de anti-ciência, desfazendo o segundo critério geral dos Manuais de introdução. Podemos até aceitar que o objeto de estudo da psicologia seja o comportamento, desde que saibamos que esta palavra já vem bem marcada e que, na verdade, significa sozinha muito pouco ou mesmo nada. Mesmo que alguma psicologia ainda queira sobrepor-se a todas as outras psicologias, mesmo Ela, quando procura autodefinir-se, apresenta-se como uma prática não-unitária. A univocidade em torno de sua definição nunca foi e ainda não pode ser requisitada.

Lembro-me muito bem que, à época dos meus primeiros estudos de graduação em psicologia, isso no ano de 1995, uma das primeiras coisas que me disseram era que Ela tinha um pai, um local e uma data de nascimento. Que tinha até berço e certidões. Seu pai teria sido Wilhelm Wundt (1832-1920), que na cidade alemã de Leipzig, no ano de 1879, fundou o primeiro Laboratório de Psicologia, mais ou menos no mesmo período em que fundou as revistas Psicologia Fisiológica (Physiological Psychology, em 1874) e Estudos Filosóficos (Philosophische Studien, em 1881)[x]. Posteriormente, acrescentaram que este surgimento oficial da psicologia esteve ligado ao surgimento de novas carreiras de pós-graduação, numa espécie de surto institucional e criativo que fez com que a universidade alemã, em finais dos oitocentos, criasse um novo e diverso cardápio de cursos de especialização. À época, alunos de outros países alfluíram à Alemanha procurando algumas destas novas especializações, entre elas a especialização em psicologia em diferentes laboratórios, e quando voltaram às suas terras natais, esses alunos egressos difundiram cada novo métier por diferentes caminhos e até hoje.[xi]

Hoje em dia, as polêmicas chegaram a tal nível que nem mesmo podemos falar de nosso pai, local e data de nascimento, tampouco de berço ou certidões. Há historiadores da psicologia que preferem encontrar seu surgimento disperso em problemas que já vinham sendo colocados desde o século XVI, e num fôlego impressionante elencam pelo menos a constituição de um plano de subjetividade como um plano de interioridade reflexiva que funda a possibilidade de uma compreensão de si, inaugurando a primeira pessoa, o Eu; a distinção entre corpo e mente como parâmetro de definição e reflexão sobre a identidade do indivíduo; a constituição do indivíduo como sujeito de direitos no interior de uma sociedade; a constituição da infância como uma fase de vida, e conseqüentemente a composição de um ciclo vital evolutivo a ser estudado e interpretado; a constituição da loucura como doença mental, e então de aparelhos para dar conta deste novo tipo de enfermidade; a cisão entre os domínios humano e natural fornecendo a possibilidade para o surgimento do pensamento em humanidades; e a cisão que marca as diferenças entre filosofia e ciência (e arte, possivelmente...) fornecendo a possibilidade para o surgimento de um ambiente científico.[xii]

As escolas são fragmentárias e mesmo as discussões sobre sua cientificidade são precárias. Se sairmos do ambiente de discussões acadêmicas e partirmos numa espécie de enquete a ser feita com profissionais da psicologia mergulhados no infame cotidiano, psicólogos e psicólogas não acadêmicos, logo perceberemos que a fragmentação das escolas cresce ainda mais e que o tema da ciência já vai meio caduco. Aos poucos, o tema da ciência vai sendo transposto pelas lógicas da prática ou da profissão, e nisso a cientificidade cede espaço para a intuição como método de trabalho. Em certos casos, quando a auto-ajuda já apresenta-se como a verdade do novo milênio, o tema da ciência vai sendo transposto inclusive pelo misticismo. Não são poucos aqueles que conseguem arrumar conceitos de escolas diferentes e fazer com que eles funcionem entre si, e relativamente bem. Cabe perguntar o quanto a definição precisa e a evolução linear no sentido de uma psicologia científica não são fetiches da universidade, e de resto se a ciência não é para o profissional ou o povo como um tema de novela, distante mas incisivo ao ponto de virar um anacronismo necessário.

Se fôssemos mais longe e chegássemos com nossa pergunta até o público leigo, o povo, poderíamos colher desde apropriações mais conceituais, pois o que é conhecido como senso comum às vezes não é tão bobo quanto parece, até o que muitas vezes já nos chega pela via do serviço: os problemas e desvios de comportamento em casa, no trabalho ou nos demais espaços de convivência, e suas soluções; não raramente os problemas ou desvios nos nervos, e suas soluções. Psicólogos e psicólogas devem ter contribuído na qualificação deste tipo de demanda. Muitos preferem Martha Medeiros. Como a face negativa da demanda também ajuda na construção da própria psicologia, podemos suspeitar que há também uma espécie de psicologia leiga a intervir na produção e no exercício dos estatutos de uma psicologia científica.

Não falo por queixa nem denúncia: a difusão é de se comemorar à moda dos grandes festivais. O que é preciso denunciar, e sobre o quê devemos prontamente nos queixar, é sobre as pretensões que cimentam este edifício meio cambaleante que é a psicologia, por quais motivos e através de quais meios cada qual de seus convivas sustenta determinadas partes da estrutura precária e redige alguns Manuais. Engana-se quem imagina que esta difusão da psicologia nos apresente um campo aberto onde virtudes amigáveis compõem conversações gentis num conclave entre cavalheiros e damas; discussões onde o desvendar dos mistérios da experiência humana fosse o motivo para o entrelaçar suave de visionários idealistas e rigorosos experimentalistas, entre grupos de metafísicos e materialistas num saboroso jantar filosófico à mesma mesa, espécie de festival acadêmico desenvolvido entre salas aconchegantes contíguas a auditórios ou salas de aulas lotadas, assim como alvos laboratórios universitários. Pelos corredores da universidade, não há somente o silêncio iluminado do intelectual, mas o ronco extenso das máquinas.

Nos diferentes resultados que podemos colher na nossa reiterada pergunta sobre a psicologia, se já encontramos o caráter não-unitário de suas definições, quando percorrermos sua materialidade cotidiana mais atentamente, aquilo que Bruno Latour chama de ciência em ação lá entre seus pesquisadores, entre seus objetos e métodos de estudo e intervenção, entre seus protocolos, instituições e redes de apoio, encontraremos até mais que simples difusões, ambigüidades e contradições: encontraremos o que Latour, em outro lugar, chamou de guerras na ciência. Briga-se efetivamente pelos estatutos da psicologia. Briga-se pela Verdade ao fazê-la. Ninguém segura o edifício meio cambaleante à toa: muitos querem guardar seu tijolinho.

O interesse científico pode ser explorado para muito além do escopo teórico; as guerras na ciência nunca acontecem entre quatro paredes, tampouco envolvem somente conceitos. Neste ponto, podemos perguntar a pesquisadores da psicologia para que servem suas pesquisas, qual sua direção ou sua intenção presente, pessoal ou científica, quais entidades estão formando as articulações de seu coletivo e por qual função ou motivo sustentam seu trabalho. Podemos percorrer os fluxos de financiamento, as negociações de prazo e as distribuições de espaço físico. E também precisamos perguntar quem é o psicólogo que pesquisa, de onde ele vem, carregado de história pregressa, como ele chegou a ser o que é e para onde pretende ir com a psicologia que está a construir.

Descobriríamos que uma pesquisa científica movimenta uma rede extensa que liga o pesquisador e a universidade a toda sorte de outros atores vivos das sociedades. Descobriríamos que existem interesses bastante diversos quando a questão é o fazer psicológico. Não será necessário que deixemos totalmente de lado o interesse conceitual, também importante enquanto exercício criativo. É preciso que consigamos agregar ao interesse conceitual um outro, aquele que poderíamos chamar de interesse estratégico: ao formular determinados conceitos, ao arranjar determinadas estratégias de pesquisa, ao optar pelo ambiente e pela circunstância acadêmica mas também ao eleger outros parceiros nesta empreitada, eis que estaremos arranjando interesses práticos e objetivos, tão pessoais quanto a biografia de um psicólogo, tão científicos quanto a biografia e os aliados de um cientista prenhe de desejos a cumprir. Além dos conceitos, é preciso perguntar dos desejos e da sua funcionalidade.

É preciso perguntar: e a tua psicologia é pra quê?

A minha é para ceifar o submisso-em-nós.



[i] Ver: Clifford Morgan. Introdução à Psicologia. São Paulo: McGraw Hill, 1978. p.2.

[ii] Ver: Maurice Reuchlin. Introdução à Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p.9.

[iii] Ver: Rita Atkinson et. all. Introdução à Psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p.10.

[iv] Ver: Donald Hebb. Introdução à Psicologia. Rio de Janeiro: Atheneu, 1971. p.6.

[v] Ver: Calvin Hall, Gardner Lindsay & Richard Thompson. Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1977. p.3-4.

[vi] Ver: Maria Teles. Introdução à Psicologia da Educação. Petrópolis: Vozes. p.13.

[vii] Ver: Linda Davidoff. Introdução à Psicologia. São Paulo: Makron, 2001. p.6

[viii] Ver: Duane Shultz & Sydnei Shultz. História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1992. p.153.

[ix] “Precisamos admitir que não vamos encontrar apenas uma configuração do Social, mas várias: cada formação histórica cria um campo de possibilidades de onde emerge uma problemática que engendra, ao mesmo tempo, uma configuração específica do Social”. Ver: Rosane Neves da Silva. Cartografias do Social – Estratégias de produção de conhecimento. Porto Alegre. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001, p.18.

[x] Ver: Duane Shultz & Sydney Shultz. História da Psicologia Moderna. op. cit.

[xi] Ver: Robert Farr. As Raízes da Psicologia Social Moderna. Petrópolis: Vozes, 1999.

[xii] Ver: Arthur Ferreira. “O múltiplo surgimento da Psicologia” in Ana Jacó-Vilela, Arthur Ferreira, Francisco Portugal (orgs.). História da Psicologia – Rumos e percursos. Rio de Janeiro: NAU, 2005. p.13-46.

Nenhum comentário: