22.6.09

O corpo

O corpo. Sim, sim: naturalmente, nosso corpo é nossa carne, nossa porção bicho-homem, o imemorial. Nossa carne é nossa porção individual de vida dentro do longo tempo sucessivo da Terra, dentro da robusta caminhada das espécies, nossa herança mais longa e mais íntima, nossa ousadia prévia e genética sempre limítrofe. Como nos foi ensinado no princípio, é cabeça, tronco e membros. Uma cabeça moldando uma face com sobrancelhas sobre dois olhos, nariz e boca ladeados por duas orelhas, bigode ou barba dependendo da condição. O corpo é uma boca e sua língua, uma boca e seus dentes, seus palatos, sua gengiva e amígdalas. O corpo é a saliva. É seu pescoço estendendo-se num tronco, tórax e abdômen, espaldas e ancas, seios dependendo da condição e umbigo dependendo do cirurgião. Algum suor. O corpo são os braços e pernas articulados em cotovelos, pulsos, joelhos e tornozelos, por fim envergando dedos nas pontas. Dedos também articulados, falanges e falanginhas, e as unhas em suas pontas. O corpo é o sexo. Cada qual à sua maneira, mesmo que tratemos de gêmeos.[1]

O corpo também é tudo aquilo que está envolvido neste pacote exterior delimitado pela pele. Desde o advento da dissecação, descobrimos que o corpo também é o cérebro e toda a distribuição dos nervos, que ele é o coração e toda a distribuição dos vasos e das artérias, o corpo são os pulmões e todas as vias respiratórias e as vias digestivas, descendo da boca ao estômago e ligando-se aos intestinos delgado e grosso, e daí ao cu. O corpo são suas carnes, seus nervos, seus ossos, suas cartilagens e também seus líquidos; seus órgãos, seus aparelhos. Vísceras, entranhas. E também é tudo aquilo que as vísceras fazem, aquilo no que elas resultam em interação dinâmica: o corpo não é só um coração, vasos e artérias, mas um sistema circulatório que pulsa e corre dentro dos limites da pele; o corpo não é somente um pulmão, mas um aparelho respiratório enchendo e esvaziando de ar os nossos alvéolos, distendendo a caixa torácica e reimpregnando nosso interior de oxigênio; o corpo é um trajeto do alimento da boca à urina ou à merda. E é também a indigestão, o enfarto, a constipação, a falta de ar e os acidentes vasculares.

Ele é também tudo aquilo que já lhe foi desvendado ainda mais intimamente, quando o corpo já não pode mais ser desvendado a olhos nus nem mesmo através da dissecação. Quando passa a ser objeto do laboratório, então o corpo também é tecido e é célula, são bombas fisiológicas explodindo aqui e ali, potenciais atravessando membranas, toda uma multitude preenchendo e percorrendo total e agilmente a complexidade das suas entranhas: são ribossomas, mitocôndrias, complexos de Golgi, lisossomos, linfócitos, eritrócitos e plaquetas, hormônios, neurotransmissores e hélices de DNA. Abismo que sempre esteve profundo demais para o nosso alcance, quando perseguimos os dobramentos que nos levam à interioridade do corpo, perseguimos o infinito no rumo do infinitesimal, uma espiral que verte adentro e sempre ficará perdida no momento que toca o mais imprevisível da nossa constituição original.

Da pele pra dentro, um abismo do corpo.

Mas o corpo já não é só isso.

Não é o caso de retomar o mecânico de Descartes apresentado por Shultz e Shultz[i], a menos que queiramos falar do contraponto à imaterialidade da verdade; tampouco relembrar La Mettrie[ii], como fez Rouanet[iii]; não é o caso de pensar no sopro divino sobre as engrenagens, tampouco na figura moderna do homem-máquina. No que diz respeito a uma problematização contemporânea acerca do corpo, Gilles Deleuze e Félix Guattari resgatam o corpo-sem-órgãos[iv] de Antonin Artaud para colocá-lo na forma de uma máquina desejante agenciada nas condições materiais de um coletivo; corpo-sem-órgãos como o processo de produção cotidiana de um corpo articulado materialmente num modo de vida específico, formando jeitos de ser e viver em co-extensão com o ambiente onde está inscrito.

Interessados que estavam na constituição cotidiana da experiência coletiva, nossos intercessores franceses estariam hoje perplexos com as transposições de nível que borram fronteiras entre humanos e não-humanos. Aparentemente livres das dicotomias entre indivíduo e sociedade, já aceitávamos que as dimensões afetivas e lingüísticas são produzidas coletivamente. De agora em diante, borrados os limiares da dicotomia entre nossa natureza e nossa cultura, a biotecnologia nos fará pensar sobre como a natureza de nossa própria carne também pode ser produzida por aquilo que é a cultura de nossa carne – ficção científica tornada realidade por conta dos avanços mais recentes da tecnociência.

A emergência da biotecnologia borra as fronteiras orgânicas que julgávamos existir entre nosso dentro e nosso fora, as fronteiras entre fisiologia, neurologia, informática e elétrica. Após a emergência do ciborgue[v] e do homem pós-orgânico[vi], o corpo-sem-órgãos não poderá ser somente figura de inspiração poética, marcando o eterno retorno de devires imateriais. O avanço das biotecnologias dá sinais de uma evolução onde o funcionamento dos órgãos de um corpo, cada vez mais, pode ser mediado ou mesmo produzido em contato com aquilo que considerávamos um espaço de exterioridade ao organismo.

O novo elo perdido não será justamente o homem pós-orgânico?

Avanços na área da pesquisa em saúde desenvolvem sistemas computacionais que captam e armazenam padrões de impulsos nervosos e/ou musculares na forma de informação digital; a partir da decodificação e análise destes bancos de dados, são desenvolvidos novos suportes tecnológicos que possibilitam a interação entre a informática e o corpo. Os impulsos nervosos e/ou musculares, decodificados e analisados por uma base computacional, permitem que estes novos suportes tecnológicos – conectados ao organismo humano – simulem ou recriem desde sensações até movimentos corporais.

A informática corporal já desenvolveu novos biochips ou wetchips no cruzamento entre circuitos eletrônicos e tecidos vivos, construindo um chip de hardware lógico e software físico que inaugura uma profunda hibridização entre matérias orgânicas e inorgânicas num mesmo sistema funcional. Pesquisas com estes novos biochips procuram devolver a visão a cegos, tratar doenças como os males de Parkinson e Alzheimer e intervir em casos de distúrbios nervosos como a depressão e a síndrome do pânico.

Outro campo de avanços bastante promissor tem sido a engenharia corporal, onde cientistas e projetistas não medem esforços na construção de próteses biônicas. Recentemente, pesquisadores norte-americanos foram festejados pela criação da primeira mão artificial; sua estrutura funcional, articulando computadores, tendões, músculos, sistema nervoso e dedos protéticos através de um dispositivo que decodifica e emite sinais elétricos, já permitiu ao usuário desenvolver tarefas complexas como digitar o teclado de um computador. Já não parece distante o tempo onde imaginamos poder fabricar órgãos inteiros, assim como outras estruturas corporais, talvez produzir ossos, medulas, córneas e mesmo fluidos corporais. Já pensamos que não será uma questão de possibilidade, mas uma questão de tempo até que se chegue ao ponto ótimo de compatibilidade entre organismos vivos, projetos, substâncias químicas, impulsos elétricos e computadores. No ponto de compatibilidade total, o fogo em nossas mãos nos dará o poder de criar a própria vida, e a cibernética terá sido a mais precursora das ciências biônicas.

Utilizando uma terminologia usualmente aplicada às intervenções no hardware, haverá o upgrade corporal. Sua corrida revelará a redenção de muitos de nossos problemas demasiado humanos ou uma endocolonização nunca antes vivida pela nossa civilização, colonização através de todas as fronteiras. Perdidos entre alarmistas e entusiastas de nossa nova condição, mas não raro percebendo suas aglutinações nas diferentes instâncias de exercício do poder, não sabemos mais se resgatamos o além-do-homem nietzschiano ou a fábula do Prof. Frankenstein; sabemos que o primeiro não teve o verdadeiro sopro de eletricidade, e que, no segundo caso, não só a eletricidade conseguiu dar vida a seus pedaços de carne reciclados.

O hibridismo entre humanos e não-humanos pede problemas por sua vez híbridos. Quando o campo nu da natureza passa a ser rasgado pelos tratores da cultura – e parece-nos cada vez mais possível e cotidiano pensar em navalhas na carne, se tomada desta ansiedade civilizatória –, a temática da produção e da reprodução tecnológica da vida deverá preocupar todas as ciências humanas. Doravante, ciências humanas só poderiam ser definidas como aquelas preocupadas com a nossa humanidade, e nisto terão que preocupar-se de nossa bioética, de nossa biopolítica e de nossa ecologia híbrida.



[1] Esta pode ser somente uma configuração suposta, isso porque é também um corpo que temos depois de ter-lhe amputado ou extirpado uma das partes, ou é também um corpo que temos quando, ao nascer, as tivemos de forma diferente da usual: apresentadoras com seis dedos são um corpo, presidentes com nove dedos são um corpo, pintores que cortam orelhas também são um corpo. Nota do autor.



[i] Ver: Duane Shultz & Sydnei Shultz. História da Psicologia Moderna. op. cit.

[ii] Ver: Julian Offroy de La Mettrie. L´Homme-Machine. Paris: Denoel, 1981.

[iii] Ver: Sérgio Rouanet. “O homem-máquina hoje” in Adauto Novaes (org.). A Ciência Manipula o Corpo. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p.37-64.

[iv] Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “28 de Novembro de 1947 – Como criar para si um corpo-sem-órgãos” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. op. cit. p.9-29.

[v] Ver: Donna Haraway & Hari Kunzru. Antropologia do Ciborgue – As vertigens do pós-humano. op. cit.

[vi] Ver: Paula Sibilia. O Homem Pós-orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2003. & Paula Sibilia. “O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade” in Revista Verve #6. São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC/SP. Out/2004. p.199-226.

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