Rio de Janeiro, 2008. Se as cenas pessoais que descrevi a propósito da minha aproximação à SOMA procuram fornecer uma metáfora possível para tal possibilidade de aproximação, certamente elas não são totalmente fiéis ao que poderíamos considerar como condições gerais para uma formação em SOMA: em primeiro lugar, não é preciso ter formação em psicologia ou em qualquer outra área previamente ligada às terapias, tampouco é necessária uma formação propriamente universitária prévia. Calhou-me como psicólogo, sim; tão brutalmente quanto não por acaso.
A formação em SOMA não é uma faculdade, tampouco um curso de especialização ou pós-graduação; ela é uma formação independente e autônoma em relação a qualquer outra estrutura ou programa institucional que busque marcar hierarquias ou conferir graus ou titulações de saber. Não procura legitimidade institucional, mesmo que tenha inevitavelmente que lidar com a presença das instituições. É uma formação desinstitucionalizada e descentralizada.
Certamente a formação tem um eixo que poderíamos chamar de técnico, onde o somaterapeuta em formação precisará pesquisar, aprender e recriar as habilidades necessárias para facilitar um grupo de SOMA: deverá conhecer as pesquisas teóricas de Roberto Freire; além disso, deverá estar atento aos diálogos destas pesquisas teóricas primordiais com autores e condições contemporâneas; deverá também situar a SOMA dentro de uma discussão mais geral sobre as terapias, e assim compreender como neste ponto ela desempenha um papel histórico e político singular, e optar por exercê-lo; deverá também saber situá-la na discussão mais geral sobre políticas, e então compreender como ela dialoga com os modos de vida militantes propondo uma política do cotidiano; deve conhecer tanto o conjunto das vivências que a SOMA utiliza quanto alguns cuidados para sua aplicação num grupo; deve conhecer os princípios da autogestão e procurar desenvolver a sensibilidade no rumo do autogoverno de cada qual por si; deverá ser jogador de capoeira angola e criar uma maneira de ensiná-la etc.
No cotidiano de uma formação em SOMA, porém, esta confluência de pontos ocorre através de projetos comuns de pensamento e prática no cotidiano do Brancaleone, tanto formando pontos de unidade quanto abrindo novas vertentes de reflexão e ação: a SOMA é uma obra sempre aberta ao presente, cotidianamente recriada de acordo com as condições sociais nas quais os terapeutas do coletivo estão inscritos. Não temos programas, aulas ou seminários, mesmo que haja uma bibliografia de consensos e dissensos, e muita conversa; não temos roteiros, caminhos prontos ou horizontes a atingir, mesmo que haja um sentido comum e compartilhado; não há um prédio com uma sala, mesa e cadeira e um quadro negro. Não há certificado a não ser a certificação da cumplicidade. O processo de formação em SOMA é um projeto de convivência cotidiana, de troca de experiências.
Um somaterapeuta em formação deve participar de tantos grupos de SOMA quanto forem necessários para que ele não só vivencie como incorpore diferentemente o conjunto de experiências que esta passagem proporciona. Há tanto diálogo quanto a necessidade de iniciativa própria: neste caminho, perceber suas próprias lacunas e então preenchê-las num processo que vai da auto-educação ao diálogo. Como é típico das práticas de pedagogia libertária, a formação em SOMA acontece pela via das trocas horizontais, onde quem deseja o conhecimento deve seguir pelos caminhos que levam à auto-educação dialogada.
Podemos dizer que a única condição geral para que alguém formalize o início de uma formação em SOMA é esta: que tenha participado de um grupo de SOMA e que queira continuar participando de grupos de SOMA, aprofundando então a relação que mantém com esta prática, exatamente o que lhe possibilitará facilitar o laboratório a outras pessoas tempos depois, somaterapeuta. Primeiro como cliente, depois como assistente, depois como co-terapeuta para, enfim, após uma quantidade de grupos que varia conforme o envolvimento ou o desencadear destes encontros que vão surgindo no cotidiano da SOMA e conforme as mudanças que este trajeto traz ao cotidiano, concluir uma formação. A formação consiste neste envolvimento progressivo, auto-educação compartilhada que nos leva do envolvimento como cliente ao envolvimento como somaterapeuta no processo de um grupo, de relativos estrangeiros a membros de um coletivo que desenvolve uma prática comum, com sentidos compartilhados e alguns dissensos marcados.
Poderia seguir listando habilidades e desafios técnicos necessários a uma formação em SOMA, e nisso mostrar a complexidade que é formar-se numa prática que caminha radicalmente entre os domínios habituais: será muito mais fácil fazer uma faculdade de psicologia ou um curso de pós-graduação em alguma modalidade tradicional de terapia do que fazer uma formação em SOMA, isso porque estes domínios acadêmicos ou formais não propõem articulações que misturam ciências, políticas e artes num complexo e radical hibridismo, e também porque seguem um caminho de tutelas em sua pedagogia, onde o racionalismo burocrático suplanta toda forma de aprendizado experiencial. Mas esses ainda seriam desafios de ordem técnica, e numa formação em SOMA os desafios desta ordem não são os principais.
Implicar-se como somaterapeuta é radicalmente diferente de implicar-se como psicoterapeuta, e aqui há o que penso ser o desafio mais fundamental na formação. Roberto Freire estava certo quando chamava a SOMA de antipsicoterapia[i]. Em primeiro lugar, é preciso entender que a mais terapêutica das relações é propriamente a amizade, que uma terapia consiste menos de técnica e mais de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas. A mais terapêutica e a mais política das relações é propriamente a amizade, e é nestes momentos revolucionários vividos entre indivíduos livres, momentos que consistem menos de técnicas que de capacidade de encontro entre as pessoas envolvidas, é daí que vem o substrato a produzir da vida uma obra radical, prazerosa e bela. A própria amizade não pode ser definida sem seu caráter revolucionário, sem ser aquele encontro de corpos que potencializa alternativas, amplifica afetos, liberta rebeldias, agencia estratégias de lado a lado.
Elegemos a amizade à anarquista como modalidade terapêutica, e este pode ser o principal motivo de chamarmos a SOMA de uma terapia anarquista: seu principal motivo terapêutico é justamente o ponto onde ela também encontra sua política, um somaterapeuta como antipsicoterapeuta será antes de tudo um entusiasta, um instigador do movimento e da criação; tentará ser o mais cruel dos amigos.
Uma terapia anarquista não é uma terapia feita para os anárquicos, mesmo que um certo modo de vida anárquico seja um balizador de sua criação e desenvolvimento; tampouco é uma terapia anarquista porque panfletária; não queremos formar hordas de anárquicos. Uma terapia anarquista é principalmente uma terapia feita por anárquicos, o que implica um jeito completamente diferente de entender e agir tanto no domínio das terapias, de tomar seus objetivos e métodos e colocá-los em prática. Uma terapia feita por anárquicos, feito ao modo anárquico, é também sua forma de resistência, é também sua política, tão pouco institucionalizada quanto qualquer outra precisa ou pode ser.
Falar de formação em SOMA, então, é falar da vivência desta amizade à anarquista nos grupos e no coletivo, o que está completamente fora de qualquer cronograma ou habilidade técnica, e que só requer encontros e uma longa preparação. De nada adiantará o domínio da técnica e da teoria se o somaterapeuta negligenciar que a capacidade para um encontro terapêutico é principalmente produzir mais vida de lado a lado. A vivência constantemente renovada em grupos de SOMA, assim como a participação na dinâmica autogestionária do Brancaleone, esses são elementos que buscam trazer esta amizade à tona, fazer do formando não só um técnico em terapias, mas um amigo à anarquista. Toda a formação técnica só pode ser vista à luz desta amizade e deste entusiasmo tanto da parte daquele que está em formação quanto dos somaterapeutas mais antigos e participantes dos grupos.
No cotidiano da formação, então, é preciso articular muito mais do que livros, teorias e técnicas; é preciso mais do que estar sentado em frente a um quadro negro, absorvendo o que é dito por aqueles que detém um determinado saber: é preciso mais do que querer um diploma... é preciso articular um corpo que visceralmente entenda os sentidos de um certo anarquismo somático, e que consiga engendrar energias suficientes para uma resistência ativa a todo e qualquer processo de adoecimento: movimentar-se entre as teorias que lhe fornecem base, conhecer biologicamente a riqueza das experiências que as vivências proporcionam, viver os sentidos da autogestão e da amizade como rumos necessários a uma política do cotidiano, ter a liberdade como norte e entusiasmar-se com ela a cada nova possibilidade de vida, mover-se pela luta-dança da capoeira angola, deixar-se vadiar, tocar e cantar... Podemos dizer que a formação consiste no progressivo envolvimento com estes contextos todos, mas que antes de um processo propriamente pedagógico, é uma longa preparação. Ninguém aprende o que é ser um amigo à anarquista senão no florescimento e na vivência das amizades à anarquista.
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