Clandestinos. A história não guardou uma única foto dele, somente o desenho de perfil que ilustra uma das edições que coletei, republicada anos depois, de seu único livro: é um desenho simples onde ele aparece de perfil, e foi rabiscado pela obsessão de Frederico Engels 36 anos depois da sua morte. Penso que é de suspeitar que ele nunca as tenha sacado, talvez averso às fotografias ou já planejando em silêncio a sua não-incursão no campo da iconografia. Também é provável que seja somente uma fantasia minha, coisa de leitura criativa, ou uma brutal e simples coincidência. O fato é que todos os grandes autores da sua época se faziam ou deixavam fotografar abundantemente, prospectando alguma iconografia futura; quem não crê que esta iconografia influencia ou seduz os seguidores no futuro, deve perguntar-se se Carlos Marx seria o mesmo Carlos Marx e os ditos marxistas seriam os mesmos marxistas se, ao invés de toda aquela farta barba que aparece em sua foto clássica, ele tivesse o vasto e dolorido bigode de Nietzsche, ou um belo e colorido moicano à moda anarcopunk.
Falo de Johann Caspar Schmidt? Não, não.
Falo de Max Stirner, passageiro clandestino da história.
É mais provável que a história não lhe tenha sido generosa pelo contragosto que tem em guardar suas ovelhas de cor outra. Penso que seja quase certo que algum positivo foi sacado, mas já que ele prospectava ser tão somente um e por isso pouco devia fazer pela política de inclusão de seu rosto entre os demais, é mais provável que sua fotos tenham ficado perdidas no fundo de algum baú de memórias locais, e sabe-se lá aonde foram parar.
Quem seria o arquivista? Seria preciso perguntar-lhe das suas motivações: talvez o arquivista lhe tenha sido somente e plenamente generoso, e por consideração; talvez tenha dedicado a Stirner a consideração que ele requisitava em seu devir clandestino. Ele queria ser qualquer um, mas um qualquer único, e por isso apresentou-se como cruelmente devastador em sua singularidade marcante e decidida perante todos os espectros que rondam o cotidiano. Se o rosto[i] também é um espectro, assim como o nome[ii], faria sentido que ele permanecesse coeso na iconografia? Ele já deveria saber que não poderia contar com isso sob o risco de arrasar o seu próprio projeto.
Johann Caspar Schmidt não era conhecido como um membro especialmente loquaz do círculo dos Livres, onde Bruno Bauer aparecia como o grande intelectual entre os hegelianos de esquerda. Sabe-se também que freqüentou a Universidade de Berlim, na qual teve aulas com Hegel e foi colega de Bakunine, que posteriormente levaria seu único livro a repercutir na Rússia. Seus ecos são sentidos nas Memórias do Subterrâneo de Dostoevski, onde reaparece nas vozes de Raskolnikov e de Kazamarov. De resto, “o pouco que se sabe são os dados que o Estado registra: nascimento em 1806 em Bayreuth e a morte em julho de 1856. Entre estas datas, dois casamentos falhados, diplomas de estudos, duas prisões por dívidas e, tudo culminando, este livro de 1845. Marie Dänhardt a quem [Johann] dedica o Único e que se separou dele pouco tempo após o fracasso do livro, depois deste lhe ter gasto a fortuna, [...] dele tem apenas a dizer que era um dandy, um fumador compulsivo, demasiado egoísta para ter amigos.”[iii]
Um infame.
Primeiro proibido por ser considerado um livro monstruoso, depois liberado por ser considerado suficientemente delirante para ser perigoso, o impacto de O Único e sua Propriedade, escrito por Johann sob o pseudônimo de Max Stirner, foi enorme mas curto. Depois de cerca de dois anos, levadas a cabo as polêmicas que manteve com os Livres, Stirner acabou por fracassar e voltar ao anonimato. Só permaneceu coeso no disparate da história porque reviveu constantemente nas mãos de outros malditos que negaram-lhe a anti-biografia, primeiro com o poeta anarquista John McKay, nos anos 80 do século XIX, depois com o vanguardismo nas artes, agora com Pound, Joyce, Picabia e Duchamp. Na filosofia, foi entrando aos poucos e acabou sendo estudado por Buber, Sartre, Camus, Heidegger, Deleuze, Foucault e Derrida; esse último, em Spectres of Marx, de 1993, alça Stirner a um lugar de ampla dignidade filosófica. Carlos Marx leu o Único com raiva e dedicou-lhe uma crítica que tinha mais páginas do que o próprio livro tem, e Frederico Nietzsche enfrentou uma polêmica acerca de seu contato com a obra de Stirner, sendo acusado por Eduard von Hartmann de plágio puro e simples.
O Único é uma peça rara de desconcerto, o livro de cabeceira dos egoístas que não crêem na fantasia dos deuses, tampouco nas fantasias da humanidade ou das sociedades, espectros do Grande Poder; o livro dos clandestinos que não investem nos rostos e nos nomes, e que nunca estiveram lá para participar do grande teatro que preside a cerimônia. Contra todas estas efígies que pretendem rondar soberanas sobre a vida bruta no cotidiano, contra todo o espiritismo e toda a transcendência, Stirner apresenta o único. Saiba: “eu sou proprietário do meu poder, e sou-o ao reconhecer-me como único. No único, o próprio proprietário regressa ao nada criador de onde proveio. Todo o ser superior acima de mim, seja Deus ou o homem, enfraquece o sentimento da minha unicidade e empalidece apenas diante do Sol desta consciência. Se a minha causa for a causa de mim, o único, ela assentará no seu criador mortal e perecível, que a si próprio se consome. Então, poderei dizer: a minha causa é a causa de nada.”[iv]
O único sou eu, o meu poder e a minha circunstância atual, é você, o seu poder e a sua circunstância atual, regressando ao nada criador que é a vida neste corpo dia após dia, desejo após desejo, vontade após vontade, jogo após jogo: os únicos e suas propriedades, aqueles cuja causa é fundamentalmente a afirmação da vida em si mesmos, causa cujo espectro além de si mesmos é nada.
Por enquanto, já que ainda vamos falando de método, acho que é importante dizer das entrelinhas deste livro, e do contexto próprio de sua propagação. Stirner escreveu um livro forte que, em primeiro lugar, não faz concessões: não se envergonha ou se furta de tratar radicalmente de temas tabus, empregando pra isso uma linguagem direta e pungente organizada num estilo que não deixa espaço para as formas tradicionais de apresentação de um problema. Stirner lança mão desta linguagem própria para dar conta de apresentar o seu próprio problema, ele também singular e radical. Em segundo lugar, chama a atenção o silêncio que acompanha Stirner e seu livro tanto durante sua produção: ele escreveu o livro em segredo. Sua atitude, não obstante fosse singularmente radical, era totalmente oblíqua ao personalismo e, como no caso dos terroristas, sem muita esperança.
Deve ter morrido pobre e só, como outros dos nossos.
Se era fumador compulsivo, que tenham lhe restado os cigarros.
Temos também o outro caso de Hakim Bey, outro passageiro clandestino da história. A alcunha estende um manto sobre a suposta identidade de Peter Lamborn Wilson, pesquisador da pirataria que também escreveu pelo menos dois livros desconcertantes sobre as possibilidades e os desafios das anarquias nos dias de hoje: TAZ – Zona Autônoma Temporária[v] e CAOS – Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares[vi]. Inspirado na pirataria e em suas estórias, relendo as condições de possibilidade para a atividade militante na contemporaneidade, Hakim Bey fornece exemplos de rara e radical beleza, e também apresenta seus problemas com uma força, numa linguagem e num estilo que não abrem concessões aos tabus e às formas tradicionais. Hakim Bey virou uma iminência parda que acompanhou boa parcela da nova geração de anárquicos até ser descoberto em sua identidade verdadeira. Também não prospectava iconografia nenhuma, tampouco espectros de rosto ou nome: seus textos quase anônimos foram originalmente traficados por bandos de malditos através da internet.
Na pesquisa e na escrita de Hakim Bey beberemos da metáfora que nos permite entender as entrelinhas destes três livros desconcertantes que ele e Stirner escreveram: utilizando-se do modo de vida dos piratas como caso que ajuda a pensar as formas de existir na contemporaneidade, Bey conclama à ansiedade de desaparecimento como forma específica de engajamento, conclama à invisibilidade, à deserção dos circuitos do Grande Poder: quando o engajamento também vira um espectro e a militância vira ato de redundância dentro de um conjunto de leis e rotinas sobrepostas, precisamos atuar diferentemente, precisamos atuar como ratos nos subterrâneos da Babilônia da informação. Como os piratas, precisamos descobrir rotas e atalhos neste alto-mar, rotas que permitam tanto atacar de surpresa e não deixar pistas de nossa identidade em fuga quanto atalhos que nos levem rapidamente aos nossos enclaves clandestinos.
Precisamos saquear, furtar, roubar e denegrir todo o comércio que passa pelas rotas oficiais, seja ele o comércio de produtos ou de outros artigos tanto mais subjetivos quanto um rosto ou um nome: produtos-coisas, produtos-idéias, produtos-normas, produtos-gente; mas também precisamos saber desaparecer sob a máscara ou o tapa-olho, saber sumir na multidão ou na solidão deste alto-mar. Entre os nossos, em enclaves secretos em meio ao grande oceano, aí sim tiraremos a máscara que protege a face de sua exposição desnecessária, experimentaremos e trocaremos iguarias roubadas, admiraremos preciosidades sem torná-las fetiche, viveremos nossos mais intensos amores e faremos toda sorte de celebrações pagãs.
“Romãs, vários tipos de amoras, caquis, a melancolia erótica dos ciprestes, rosas de Shiraz de delicadas pétalas cor-de-rosa, jardineiras com aloé & benjoim de Meca, os caules rígidos das tulipas otomanas, tapetes abertos como jardins artificiais sobre gramados verdadeiros – um pavilhão inteiro decorado com um mosaico de caligramas – um salgueiro, um riacho repleto de agriões do brejo – uma fonte sob cristais geométricos – o escândalo metafísico que são as odaliscas banhando-se, os criados negros brincando de esconde-esconde, molhados, por entre a folhagem – água, verdura, belos rostos”[vii]: seria assim em Libertatia ou em Croatã?
Libertatia, enclave pirata e clandestino fundado pelo capitão Mission, um lugar onde a propriedade da terra era comunitária, onde representantes eram eleitos somente para períodos curtos, onde todos os saques eram repartidos entre todos, criada para ser autônoma mas temporária, sem nenhuma lei além do bom senso ou do fio da lâmina, totalmente oculta aos olhos do Grande Poder ao ponto de ser considerada uma lenda até mesmo para alguns dos bucaneiros de Madagascar que estavam habituados a freqüentar tais enclaves, provavelmente habitada por piratas, escravos fugidos ou libertos – um dos principais objetivos dos piratas era libertar navios negreiros – e por grupos de gente mestiça. Território de celebrações e excessos.
Croatã, na região do Grande Pântano Sombrio, longe do litoral da ilha de Roanoke, ilha que fica no costado do estado americano de Carolina do Norte, onde uma primeira colônia inglesa existiu entre 1585 e 1587. Nesta erma região existia e ainda existe uma tribo de índios amigáveis, com olhos cinzentos, para onde todo o povoado de colonizadores migrou, fundando um enclave multi-racial, renunciando seu contato com os ingleses colonialistas e plutocratas e optando pelo estado selvagem; abandoram os impostos, abandonaram a Igreja e adotaram o paganismo, o trabalho no campo e a educação libertária contra todos os fardos da civilização entorpecida. Deixaram pra trás somente uma mensagem críptica: fomos para Croatã.
Johann Caspar Schmidt foi pra Croatã.
Peter Lamborn Wilson foi pra Croatã.
Eu também vou.
[i] “Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. [...] O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância e freqüência. [...] Sugestiva brancura, buraco capturador, rosto.” Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “Ano zero – Rostidade” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.32-33.
[ii] “Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo a arrumar estas tribos, a dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas, a fazer prosperar outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto [...]; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele. [...] Quando se chega a este ponto, se está sozinho, mas se é também como uma associação de malfeitores.” Ver: Gilles Deleuze & Claire Parnet. “Uma conversa, o que é, para que serve?” in Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p.17-19.
[iii] Ver: José A. Bragança de Miranda. “Stirner, passageiro clandestino da história” in Max Stirner. O Único e sua Propriedade. Lisboa: Antígona, 2004. p.297-298 e ss.
[iv] Ver: Max Stirner. O Único e sua Propriedade. Lisboa (Portugal): Antígona, 2004. p.286.
[v] Ver: Hakim Bey. TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Ed. Sabotagem, 2004.
[vi] Ver: Hakim Bey. CAOS – Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.
[vii] Ver: Hakim Bey. TAZ – Zona Autônoma Temporária. op. cit. p.23-24.
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