Terroristas. O fogo, a dinamite, a pólvora, o punhal e mesmo o revólver fazem parte de determinados métodos. Certamente não fazem parte do rol dos métodos científicos, e falaremos disso a seguir. Entre os métodos anárquicos, porém, vejamos o caso de algumas pesquisas: na primavera de 1877, um bando armado conhecido como bando armado do Matese, composto por nomes de história entre as anarquias – como Carlo Cafiero e Errico Malatesta – e também por outros nomes cuja memória não foi guardada com tanto cuidado, pois o bando armado do Matese toma de assalto cidades do interior da Itália e sistematicamente queima tanto seus arquivos municipais quanto seus registros de impostos e demais documentos da intendência; além disso, o bando toma e redistribui ao povo tanto os fuzis da guarda municipal imediatamente destituída quanto os machados que haviam sido confiscados aos camponeses pela administração da cidade quando de uma medida pretensamente ecológica. O pouco dinheiro que é achado na caixa do cobrador de impostos também é distribuído ao povo. Enquanto queimam retratos do rei Vittorio Emanuele II publicamente, falam ao povo sobre as anarquias e são veementemente aplaudidos com alegria[i]. Era um dos prelúdios. À época, vários acontecimentos como esse vieram marcar a emergência de uma nova forma de ação direta como método anárquico.
Durante o ano de 1878, quatro atentados contra quatro diferentes Coroas foram registrados: um operário denominado Hoedel, e depois o Dr. Nobiling, eles atiram contra o Imperador alemão; algumas semanas depois, um outro operário denominado Oliva Moncasi, esse espanhol, ele dispara um tiro contra o Rei da Espanha; também o cozinheiro denominado Passamante tenta apunhalar o Rei da Itália. Em 1881, Alexandre II, czar russo, é executado durante uma parada pública. “Lançaram uma bomba sob a carruagem blindada, para detê-la. Alguns circassianos da escolta foram feridos. Ryssakov, que lançara a bomba, foi preso em flagrante. [...] O czar fez questão de descer. [...] Aproximou-se de Ryssakov e perguntou-lhe qualquer coisa, e quando passou perto de um rapaz chamado Grinevetsky, o qual tinha uma bomba na mão, este atirou a bomba de forma que explodisse entre o czar e ele próprio, para morrerem juntos. [...] Alexandre ficou estendido na neve, abandonado de toda a escolta.”[ii]
Mais pesquisas: no dia 13 de novembro de 1892, em Paris, Léon Jules Léauthier atenta contra a vida do ministro da Sérvia Georgevitch. É condenado à prisão perpétua e, no ano de 1894, é assassinado na prisão de Iles de Salut durante uma rebelião. Na tarde de 9 de dezembro de 1893, Auguste Vaillant lança uma bomba caseira cuja matéria-prima foi uma marmita, um punhado de pregos e outro de pólvora. Lançou a bomba nas dependências do Hôtel-Dieu, em Paris. Não deixou mortos, mesmo que tenha deixado muitos feridos. Foi condenado à morte pela guilhotina. Émile Henry, em 1893, promove duas explosões a bomba em Paris: a primeira na Rue des Bons-Enfants e a segunda no Café Terminus. Nos anais do seu julgamento, resgatados pelo historiador Jean Maitron, não demonstra qualquer tipo de arrependimento pelas mortes que causou; considera que seus atos estão tão sujos de sangue quanto a própria toga do juiz. Diferente de Vaillant, não colocou pregos dentro das marmitas que lhe serviram de matéria prima para as bombas caseiras: no atentado do Café Terminus, por exemplo, o rastilho detonava uma marmita na qual Henry colocara 120 balas de calibre. Deixou claro que não queria somente machucar[iii]. Na noite de 24 de junho de 1894, Sante Geronimo Caserio, depois de completar os últimos 27 quilômetros da viagem entre Sète e Lyon a pé por falta de fundos, mistura-se à multidão que acompanha a visita do presidente francês Sadi Carnot à Exposição Universal Lyonese. Em momento oportuno, abre espaço entre a multidão e afunda 11 centímetros da lâmina de seu punhal na direção do fígado do presidente. Sadi Carnot, que havia negado o indulto a Auguste Vaillant naquele mesmo ano, morre 3 horas depois. A Sra. Carnot, no dia seguinte, recebe uma carta com a fotografia do anárquico Ravachol, também condenado à morte após suas ações radicais, e um bilhete onde se lia: devidamente vingado. Na noite de 29 de agosto de 1900, Gaetano Bresci assassina em Milão o Rei Humberto I: foram três disparos certeiros no coração. Em 6 de setembro de 1901, Leon Czolgosz dispara contra o presidente americano William McKinley durante um comício em Búfalo. McKinley falece alguns dias depois.
Propagar pelo fato, inclusive pelo crime.
Malditos terroristas.
Os anárquicos desde muito eram perseguidos, presos e mesmo assassinados pela coligação e o exercício orquestrado dos interesses da burguesia ascendente e das instituições de Estado em toda a Europa. A madre Igreja normalmente esteve envolvida ou quieta, e certamente tinha seus interesses também. Após os ecos da Comuna de Paris e seus outros alvoreceres, perseguições de toda sorte foram intensificadas e há mesmo quem prefira falar nos termos de caça às bruxas: a caça aos anárquicos. Alguns jogaram-se à clandestinidade e à ação direta, totalmente imbuídos da convicção de que um ato radical vale mais do que mil panfletos impressos, e já suficientemente vacinados contra o caráter sedativo da prática dos timoratos – “aqueles que fazem abortar todos os movimentos revolucionários por recearem que o povo, uma vez lançado na ação, deixe de obedecer à sua voz”[iv] –. Os anárquicos lançaram-se à propaganda pela ação e resolveram impor ao jugo do Grande Poder a presença inesperada da rua.
Não foi uma prática combinada por uma grande inteligência ou por uma organização internacional, mesmo que os principais nomes guardados na história das anarquias tenham comentado breve ou gravemente o tema. Também é certo que não traduz uma soma de simples atitudes de revolta pessoal. A quantidade de exemplos mostra o quanto foi difusa e dispersa, mas também o quanto foi gerada por um consenso talvez mudo acerca da necessidade do protesto vivo e ativo: como quando cúmplices comunicam sem trocar palavra.
Como estratégia de ação anárquica, a ação direta inaugura um limiar rompante de experimentação, é um projeto militante concebido em ação que busca não só idealizar-se mas realizar-se mesmo que seu ator tenha que entrar em embate direto com forças coordenadas do Grande Poder. A ação direta não é somente um propósito final para a militância, mas imediatamente a sua realização. Mesmo que as anarquias sejam imediatamente ilegalistas ou que não reconheçam em tese os preceitos coordenados do Grande Poder, na ação direta o anárquico coloca-se imediatamente entre suas forças, claramente a fim de combatê-las, sem subterfúgios. Tanto mais anárquico será seu método quanto mais reais forem as suas perspectivas de ação e mais libertários os seus efeitos.
Mesmo que a cotovelos, colocar-se entre as forças do Grande Poder para tentar inaugurar, local e forçosamente, uma nova condição real de autonomia, uma zona onde se lide visceralmente com aquilo que atua no jogo, não raro face a face com suas figuras emblemáticas ou seus objetos-fetiche. Estar aí, permanecer o quanto puder, se possível causar estardalhaço, zombaria, fazer ruídos, vandalizar, tentar causar baixas ou deserções graves, reativar sempre o tamanco jogado à moda anárquica, desembaraçar-se desta intimidade às avessas que temos com o sistema. Desejar que pelo menos um pedaço de si perceba-se fora do sistema, talvez jogar-se todo para fora dele, agir nele a despeito de sua preexistência, tê-lo nu e já em vias de desfiguração. Maquiná-lo e não ser maquinado, provar do ar que existe neste grande fora de quando as engrenagens param ou do cheiro viscoso de quando as engrenagens trancam.
Um momento de autonomia.
Arriscar conhecê-lo íntima e visceralmente.
Do que difere a ação direta de uma analítica mais geral do poder é o fato de que a primeira deseja abertamente ser pungente e clara, é abertamente voluntária e está sempre na busca de um presente inesquecível e reinaugural, mesmo que local. A ação direta não é uma analítica, senão a tentativa real e voluntária de atualização do campo de possibilidades para a liberdade ali onde nenhuma análise teórica das liberdades sonhadas faria tanto ou quanto, mesmo que fosse possível. A ação direta é a inauguração do impossível dentro deste campo de possibilidades dadas pelo Grande Poder, uma entrada ao mesmo tempo furtiva e entusiástica no jogo que preside as circunstâncias.
Aí perguntam-me se sou a favor dos assassínios.
Mas não serão a polícia e os exércitos os principais assassinos?
Não há esperança: antes mesmo da emergência da terrorismo como método anárquico, a resposta dada pelos operadores do Grande Poder já era suficientemente rigorosa em se tratando de anarquias. Os ditos presos políticos, categoria ampla que compreendia tanto os encarcerados quanto os exilados a contragosto, esses eram uma população extensa em diversas regiões ermas e prisões da Europa; os mortos engrossavam esta estatística. Kropotkine, ele mesmo preso inúmeras vezes por conta de sua militância política, ele depõe: “foram levadas perante a justiça cento e noventa e três pessoas, presas entre os anos de 1873-1875, por terem tomado parte na nossa agitação. [...] A maioria deles estivera durante três ou quatro anos em prisão preventiva, à espera dos julgamentos, e [...] nada menos que vinte e um dos presos se tinham suicidado ou haviam enlouquecido. [...] Aqueles que tinham sido absolvidos pelo tribunal, foram exilados para regiões longínquas da Rússia e da Sibéria e infligiram-se de cinco a doze anos de trabalhos forçados àqueles que o tribunal havia condenado somente a leves penas de prisão.”[v]
Advogamos a nossa cota de protesto ativo e sabemos que acabaremos mal: ou bem nos trabalhos forçados, ou bem numa longa temporada no cárcere ou na prisão perpétua, não raro na pena capital. O verão será a clandestinidade. Saibamos que foram vários os alvoreceres de Paris onde o risco fino da lâmina terminou com determinados malditos pela via do pescoço; e vários os alvoreceres em Petersburgo onde o estampido das garruchas terminou com outros tantos pela via do peito. Não raro estas cerimônias tinham o apelo do espetáculo público. E aconteceram em diversas cidades, por diversas vias, e com diversos malditos. O assassínio campeou solto, e não precisamos ir além-mar nem mesmo além das fronteiras nacionais para saber de casos semelhantes. Se, no presente, práticas como o enforcamento ou o fuzilamento já são anacrônicas no Ocidente civilizado e nem mesmo o Grande Poder consegue justificá-las sem polêmicas, é certo que outras penalidades ditas mais justas foram inauguradas para tomar o seu lugar.
Por ora, junto a uma apologia da ação direta, devemos também fazer uma apologia da prudência, e não porque não queremos apunhalar mais reis ou porque não queremos mais reis mortos, também não porque ainda tenhamos esperança, senão porque “é preciso guardar o suficiente de organismo para que ele se recomponha a cada aurora. [...] Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano.”[vi] Não queremos mais sofrer a pena principal de ter os anárquicos mortos neste embate: queremos Ravachol vivo, Henry vivo, e que esteja e permaneça vivo todo o bando armado do Matese. Queremos todos os militantes mortos pelo Grande Poder, e os queremos vivos, porque são cúmplices raros que levaram seu método anárquico ao cabo da falha fatal, e nisso não sobreviveram. Não cabe aqui fazer somente a apologia da punhalada.
Cada anárquico morto é também uma punhalada nas anarquias.
Sobre o que chamam de terrorismo anarquista, é certo afirmar que foi e continua sendo composto principalmente por malditos cuja atitude individual de disposição à ação contra os regimes de poder estabelecidos não reconhece os obstáculos formais oferecidos por estes próprios poderes. Dos pioneiros, certamente desde antes dos citados e até mais recentemente, importa é perceber os malditos optando por uma atitude de desobediência aberta e franca dentro de um sistema de acordos vigentes, agüentando suas conseqüências, e sem muita esperança.
Eis o nosso radical desespero.[vii]
Mas por que a crueldade[viii] é prerrogativa do Grande Poder?
Não queiramos ir tão longe neste momento. Podemos ter estratégias mais prudentes, se quisermos e pudermos. Deixemos de lado o assassínio e fiquemos com um novo sentido para a arte numa longa ajuda de Hakim Bey. Buscando o que ele chama de terrorismo poético, incitações: “dançar de forma bizarra durante a noite inteira nos caixas eletrônicos dos bancos. Apresentações pirotécnicas não autorizadas. [...] Arrombe apartamentos, mas, em vez de roubar, deixe objetos poético-terroristas. Seqüestre alguém e o faça feliz. [...] Mais tarde, essa pessoa perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência. Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc. Fique nu para simbolizar algo.” Buscando o que ele chama de arte sabotagem, queiramos algo “[...] perfeitamente exemplar, mas, ao mesmo tempo, [com um] elemento de opacidade – não propaganda, mas choque estético – aterradoramente direta, mas ainda assim sutilmente transversal [...]. Não faça piquetes – vandalize. Não proteste – desfigure. [...] Jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça.”[ix]
Os de outrora identificavam-se como assassinos delicados.
Agora, terroristas poéticos, arte sabotadores.
Nesta ocasião, o quão criminoso o Grande Poder me permite ser?
[i] Ver: Nildo Avelino. “Anarquias, ilegalismos, terrorismos” in Salete Oliveira & Edson Passetti (orgs). Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006. p.125-138.
[ii] Para uma descrição mais detalhada do assassinato do czar Alexandre II, ver: Piotr Kropotkine. Em torno de uma vida. Rio de Janeiro: José Olympio. 1946. p.408.
[iii] Ver: Acácio Augusto. “Terrorismo anarquista e a luta contra as prisões” In: Salete Oliveira & Edson Passetti (orgs). Terrorismos. op. cit..
[iv] Timorato foi o termo utilizado pelo anárquico Émile Henry durante seu julgamento, em Paris, para descrever aqueles que ainda empenhavam-se em constituir uma direção para as ações políticas do povo. Para uma exposição sobre a circunstância de seu julgamento, ver: Jean Maitron. “Émile Henry, o benjamin da anarquia” in Revista Verve #7. São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC/SP. Mai/2005. p.11-41.
[v] Ver: Piotr Kropotkine. Em Torno de uma Vida. op. cit. p.390-391.
[vi] Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “28 de novembro de 1947 – Como criar para si um Corpo sem Órgãos” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia Vol.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.23.
[vii] O desespero não é um estado final ou mórbido, mas um estado nobre que atingimos depois de desacreditar as esperanças do passado e as esperanças no futuro, estado que move ao ato criador e presente em sua radicalidade. Para uma discussão sobre o desespero, ver: André Compte-Sponville. Tratado do Desespero e da Beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[viii] Sobre a crueldade, ver: Clément Rosset. O Princípio da Crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. Ver também: Antonin Artaud, “O Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto)” in O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.101-115.
[ix] Ver: Hakim Bey. “Terrorismo Poético” & “Arte Sabotagem” in Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. p.13-14 & 21-22.
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