22.6.09

Grande Poder, ainda

Grande Poder, ainda. Tentarei operar com uma concepção de poder que, mesmo que já não seja mais considerada herética aos olhos dos entendidos em política, ainda assim permanece em condição controversa dentro dos quadros pintados pelos cientistas, analistas e militantes esquerdistas das últimas décadas; o conjunto mais geral das análises políticas parte de outro princípio. A dificuldade em apresentar o Grande Poder reside no fato que sua grandeza reside menos em sua larga extensão – mesmo que esta seja também uma das suas características – do que em sua farta mas difusa distribuição: seu paradoxo consiste no fato de que tanto maior ele é, tanto mais difícil é percebê-lo; tanto mais difusa é sua distribuição, tornando-o mais intenso, tanto mais difícil é percebê-lo.

Uma curiosidade: à época de seus primeiros anos como professor em Clermont, França, idos de 1960-1962, o filósofo Michel Foucault torna-se amigo de Jules Vuillemin, outro dos professores de filosofia daquela universidade. Seus biógrafos contam que ambos eram vistos juntos seguidamente, e um de seus programas preferidos eram as longas caminhadas pelo centro da cidade; também eram vistos em grandes mesas de restaurante, rodeados de muitos outros colegas da mesma universidade, isso quando almoçavam juntos. A despeito da amizade que se desenvolvia e das longas conversas que mantinha com Vuillemin, ambos percorreriam caminhos que levariam suas opiniões pessoais ao ponto das divergências que se afirmam mais e mais: Vuillemin progressivamente torna-se um homem de direita e Foucault, bem ou mal, permanece um homem de esquerda. Não só em seus livros, mas no seu interesse e envolvimento com as agitações do maio francês, no seu envolvimento na discussão sobre as prisões e na própria escolha de seus temas de pesquisa, esses desdobrados até nós através dos cursos que ele ministrou já na época do Collège de France (1970-1982), tudo isso deixa entrever um interesse transversal nas práticas libertárias. No ponto cego de suas divergências com Vuillemin, Foucault costumava terminar as discussões afirmando que o amigo era um anarquista de direita enquanto ele próprio era um anarquista de esquerda.[i]

Será só uma brincadeira entre amigos?

A presença de discussões e citações sobre os anarquismos em seu trabalho, dada a profusão e o fôlego de sua obra, é bastante rara. Sabemos que ele tratou da emergência do anarquista como categoria psiquiátrica em seu curso Os Anormais – e nisso também contribuiu para uma análise daquilo que foi chamado de terrorismo anarquista[ii]; que fez algumas reflexões sobre o anarquismo de Charles Fourier em outros destes cursos no Collège de France[iii]; que, nas conferências que fez no Brasil no ano de 1973[iv], citou o anarquismo a propósito de suas discussões sobre o voluntarismo da militância; e que tratou do tema de forma esparsa em outras conferências e artigos que ministrou ou escreveu[v]. Nutriu polêmicas com Chomsky[vi] e certamente conhecia a escrita de La Boétie[vii] e Pierre Clastres[viii].

Podemos dizer que esta bruma que cobre uma possível ligação de Foucault com os anarquismos está bem relacionada com o restante de sua produção, isso porque, assim como outros dos seus cúmplices, Foucault procura uma política sem filiações, nos limites da heterodoxia e da heterotopia. As reflexões que ele irá desenvolver durante esta produção, porém, dialogam e contribuem tanto para os anarquismos contemporâneos que podemos imaginar que aquela brincadeira com Vuillemin não era somente uma brincadeira cotidiana entre amigos, mas também uma forma gentil de colocar uma verdade pessoal e difícil ali onde, pelas fissuras, surgem grandes escândalos acadêmicos: já em Vincennes, nos anos 70 e a propósito de uma polêmica dirigida contra os professores de esquerda, Foucault recorda e lamenta que desde o início do século é censurado aos docentes de filosofia divulgar idéias anarquistas.[ix]

Conhecemos isso ainda hoje.

Michel Foucault, clandestino.

Mesmo que ele não tenha esta filiação aberta e que o problema que ele nos ajudará a colocar não seja um problema propriamente anárquico, ele nos ajudará na discussão sobre algumas estratégias necessárias à colocação do problema do poder. Vejamos: em primeiro lugar, “não se trata de analisar as formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro, [mas de] tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em conseqüência, mais além destas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentos”[x]; em segundo lugar, “estudar o poder, de certo modo, do lado de sua face externa, no ponto em que ela está em relação direta e imediata com o que se pode denominar, muito provisoriamente, seu objeto, seu alvo, seu campo de aplicação, no ponto, em outras palavras, em que ele se implanta e produz seus efeitos reais”[xi]; em terceiro lugar, “não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo [...]; o poder [...] deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. [...] O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo”[xii]; em quarto e último lugar, “seria preciso [...] fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir dos mecanismos infinitesimais [...] e depois ver como estes mecanismos de poder [...] foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos [...] por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.”[xiii]

Um parágrafo denso; voltemos: em primeiro lugar, “não se trata de analisar as formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro”, ou seja, não se trata de analisar o poder ali onde ele apresenta-se convergente e concêntrico, onde ele apresenta-se evidente, através dos grandes e principais conjuntos que, numa primeira visada, parecem constitui-lo. O problema do poder não diz respeito ao problema do Estado, ao problema da Empresa, ao problema da Ciência ou ao problema da Mídia, mesmo que o Estado, a Empresa, a Ciência e a Mídia sejam formas regulamentadas e legítimas dentro da realidade do Grande Poder. Trata-se de analisar o prolongamento destas intituições gerais no cotidiano, não só através do prolongamento dos operadores do Estado, da Empresa, da Ciência e da Mídia em âmbito local, mas também em seu prolongamento entre aquilo que aparentemente lhe é externo, ali onde seu prolongamento estende o poder não somente entre os grandes conjuntos, mas entre os corpos. Em segundo lugar, “estudar o poder do lado de sua face externa”, ou seja, tomar o problema do poder não somente através dos seus mecanismos internos de sustentação, mas também no ponto onde ele encontra-se diretamente em embate com aquilo que constitui a sua exterioridade, no ponto onde o poder deixa de ser uma forma precisa e passa a ser uma agonística, uma luta. Podemos dizer que precisamos estudar o poder no ponto onde ele não conseguirá um exercício livre do exercício da resistência. Em terceiro lugar, “não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo”, ou seja, não tomar o poder como uma prática de dominação e repressão unificada, mesmo que ele possa ter efeitos de dominação e efeitos repressivos eventualmente generalizados; é preciso tomar o poder como um prática exercida em cadeia, de ponto em ponto e diferentemente a cada vez, tomar o poder como uma prática em relação a qual todo indivíduo está em posição de submeter-se ao poder, mas também de exercê-lo. Em quarto e último lugar, “fazer uma análise ascendente do poder”, ou seja, fazer uma análise dos deslocamentos deste poder exercido como prática local até a realização de seus mecanismos mais gerais e globais, esses possivelmente representados pelas formas regulamentadas e legítimas das quais seria preciso abrir mão em primeira instância.

Em poucas páginas, Michel Foucault joga uma tina de água fria no problema do poder tratado à tradicional. Para genealogias mais meticulosas representando a pesquisa cotidiana de Foucault, sugiro a série de quatro cursos que ele ministra no Collège de France entre os anos de 1975 e 1980[xiv], mesmo que esta reflexão sobre o poder esteja dispersa ao correr de toda a sua obra, de diferentes maneiras. Aqui, porém, ficaremos com suas precauções somente no que elas nos servem para fazer uma pequena crítica da esquerda à tradicional: uma genealogia da queixa esquerdista como elemento constitutivo de seu discurso e de suas práticas, aquilo que já foi chamado de militância vivida como impotência[xv], esta genealogia mostra uma relação direta da militância vivida como impotência com a constituição do poder como campo regulamentado e legítimo exercido sobre indivíduos dispersos e sem escolha possível. Amparados numa concepção de poder que percebe seu exercício como descendente e unidirecional, seja uma unidirecionalidade capitaneada pelas infra-estruturas institucionais, seja uma unidirecionalidade capitaneada pelas super-estruturas ideológicas, a esquerda à tradicional é dada às analíticas da dominação e da repressão.

É justo que ela coloque o problema do poder desta maneira, mas não porque o poder seja exercido desta maneira; como a face negativa do próprio capital, a esquerda à tradicional disputou historicamente os seus mesmos espaços de realização, e nisso perdeu gravemente. A militância vivida como impotência, tomando o poder como dominação maciça e repressão vigente, é um dos sintomas do apodrecimento da esquerda à tradicional, e talvez o principal indício de sua capitulação final. O motivo da queixa, venha ela na forma de filosofia política ou em palavras de ordem, é a frustração no desejo da esquerda à tradicional de estar onde o capital está: ela também deseja exercer o poder maciçamente, lançou mão de estratégias que buscavam este tipo de exercício e nisso foi completamente equivocada. O principal reflexo deste equívoco é a perplexidade atual. Enquanto a esquerda à tradicional agoniza, o capital avança como se não houvessem outras alternativas.[xvi]

Mas poder é outra coisa.

Empoderar-se também é.

O Grande Poder surge de uma massa – seja ela leiga ou crítica – dispersa pelo cotidiano da vida, e que dos confins deste cotidiano, na surdina da história, investe tanto a tanto o seu desejo na produção e na permanência da unidirecionalidade, da hegemonia e dos grandes equipamentos; de uma grande massa dispersa que deseja os resultados do Grande Poder, seu folclore, suas bonificações, memórias, mecanismos, rotinas e afetos. Dizer que o poder é exercido diferentemente não é dizer que não vivemos uma situação de quase total hegemonia, senão de hegemonia imperial no que diz respeito à produção e à permanência do modo de vida capitalista. A penetração das instituições de produção, sedução e regulamentação deste modo de vida chega ao ponto do sufoco, no ponto onde seus manuais de ética propõem que rasguemos da própria vida como forma de fazer funcionar a turbina do que virá, e nisso todos cortamos da nossa própria carne. A conivência geral da população indica que o Grande Poder está realmente instalado, e sua principal característica não é nenhuma outra além do fato de ele ser maciçamente desejado.

O Grande Poder surge quando as forças reacionárias presentes nestas diferentes formações históricas que coexistem manifestam-se, seja solitária ou coletivamente, seja em consenso ou dissenso, e assim mostram não só a enormidade do corpo do monstro autoritário, mas o não-estatuto de sua imagem móvel e fractal, e a força dispersa que surje na junção destes diferentes arranjos de poder vigentes em nosso cotidiano mais direto: o Grande Poder é resultado direto desta equação complexa que concorre para dar existência ao instante que vivemos, surje do embate entre diferentes formações históricas tanto globais quanto locais em atualidade como a sua face mais reacionária. O Grande Poder não surge de um estatuto próprio, mas como um dos efeitos do embate entre estatutos.

Empoderar-se é resistir a isso, aqui e agora.

Do jeito que for possível.

É tensionar rumo ao impossível neste embate entre estatutos.



[i] Ver: Salvo Vaccaro. Foucault e o Anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé, s.d. p.7.

[ii] Ver: Michel Foucault. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[iii] Ver, especialmente: Michel Foucault. “Aula de 28 de janeiro de 1976” & “Aula de 17 de março de 1976” in Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.75-98 & p.285-315.

[iv] Estas conferências foram transformadas em livro. Ver: Michel Foucault. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

[v] Ver: Salvo Vaccaro. Foucault e o Anarquismo. op. cit.

[vi] idem.

[vii] Filósofo francês (1530 – 1563) considerado um dos precursores do pensamento anarquista.

[viii] Antropólogo e etnógrafo francês (1934 – 1977) com convicções anarquistas e anti-autoritárias.

[ix] Ver: Salvo Vaccaro. Foucault e o Anarquismo. op. cit. p.12.

[x] Ver: Michel Foucault. “Aula de 14 de janeiro de 1976” in Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.32.

[xi] Idem. p.33.

[xii] Idem. p.34-35.

[xiii] Idem. p.36.

[xiv] A saber: Michel Foucault. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (curso de 1975-1976); Michel Foucault. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008 (curso de 1977-1978); Michel Foucault. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008 (curso de 1978-1979). O último deste ciclo de quatro cursos, chamado Do governo dos vivos, ainda não tem edição em português, mas pode ser acessado através de seu resumo em: Michel Foucault. “Do governo dos vivos” in Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p.99-106.

[xv] Ver: Luis Cláudio Figueiredo. “A militância como modo de vida. Um capítulo na história dos costumes contemporâneos” in Modos de Subjetivação no Brasil e Outros Escritos. São Paulo: Escuta, 1995. p.111-128.

[xvi] Empreendi esta discussão sobre a constituição do modo de vida militante no ambiente da esquerda tradicional na minha dissertação de mestrado. Ver: Stéfanis Caiaffo. Resistência e Militância – Cartografias contemporâneas. op. cit..

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