23.6.09

Vida

Vida. Contra o enciclopedista, o franco-atirador: ainda a propósito de uma discussão sobre o método, seria sempre possível retomar Paul Feyerabend e sua teoria que vulgarmente resumimos no tudo vale . Daí, tomando como referência qualquer uma das suas discussões, poderíamos puxar e discutir ou simplesmente falar sobre uma outra lista extensa e complexa de epistemólogos disponíveis, dos mais positivistas aos mais anárquicos. Também poderíamos fazer uma revisão sobre as concepções de ciência e universidade presentes em grande nomes da história das anarquias . A ciência é tema que já foi ampla e fartamente trabalhado e há bibliografia disponível para discussões complexas que justificariam não só um capítulo ou sessão, mas várias teses de doutoramento. Atualmente, podemos encontrar aliados que permitam uma nova concepção de ciência e uma nova prática acadêmica até mesmo fora do ambiente mais propriamente anárquico, e nisso também dialogar com cúmplices outros .
Mas não: é preciso deixar de lado os problemas que já foram pisados e repisados. Aqui, até agora, optei por enfatizar vidas, modos de vida; pessoas, experiências e não teorias: até agora, terrorismo, clandestinidade e hedonismo. Que tenhamos discussões de outra ordem, normalmente relacionadas aos pressupostos de base ou às rotinas de trabalho científico, e também refinamentos sobre seus pressupostos de constituição cotidiana, e que isso também seja certo ou correto, tudo bem. Também as faremos mais adiante. Agora, porém, a questão do método diz respeito às estratégias necessárias para que determinados objetivos sejam alcançados na produção de pensamento, e não às condições gerais de execução destas estratégias. A questão não é faça se, mas faça-se. Vire-se. Faça acontecer.
Se pensarmos o caso do trabalho acadêmico, e nele quisermos algum método como aqueles dos terroristas, dos clandestinos e dos hedonistas, um método radicado na vida cotidiana, no corpo pulsante em vias de autonomia, nos cristais de gozo, então nosso método consistirá primeiro nas estratégias necessárias à exploração desta vida de agora, neste corpo de agora, e não propriamente nas condições gerais para esta exploração.
Se um trabalho acadêmico sugerir qualquer espécie de filiação à ciência, espectro, e para isso desejar angariar para si mesmo algum pressuposto de generalidade sobre o que está apresentando, ou desejar angariar quaisquer dos outros pressupostos que fundam a possibilidade do (des)conhecimento científico, então é realmente melhor que o autor deste trabalho diponha de algum dos métodos científicos existentes, ou forje o seu. Serão, fartamente, os métodos científicos os mais apropriados para que este trabalho logre seu sucesso e, a despeito da ciência, devemos buscar principalmente isso: que as estratégias permitam que determinado projeto logre resultados satisfatórios, e nisso produza algum pensamento. Adianto que não há nada contra o método científico: se alguém quer empregá-lo, pois faça-o e seja feliz.
O que passa é que, no cotidiano de produção e em grande parte das discussões da própria universidade, pensando especialmente o ambiente das ciências ditas humanas mas sabendo que não só nele, o fato é que as discussões que remontam as críticas da verdade e da generalidade já estão muito bem feitas, polêmicas instauradas ou não. Já há suficiente fôlego para que um trabalho acadêmico não só opte como opere uma anti-ciência ou uma ciência menor . É preciso afirmar uma única e última vez, e depois seguir adiante: a produção de pensamento não está subordinada à produção científica. O que acontece é justamente o inverso: a produção científica é uma das formas possíveis de produção de pensamento, uma estratégia, nem a única nem necessariamente a melhor. O acordo científico é uma estratégia possível porque também arranja a experiência vital de alguém que coloca-se neste lugar de desejar pensar, porque fornece determinada qualidade de estímulos para que o pensamento aconteça ou não, de tal ou qual maneira.
Se a suposição é de que o método científico é o único capaz de garantir a segurança na transposição da ponte que leva da ignorância ao saber, bem, esta suposição deve ser abolida não somente em discussão mas em atitude. Da minha parte, vejo que o pensamento é algo raríssimo e que sua emergência está menos ligada a um tipo específico de método do que a uma forma específica de encarar a vida. Em decorrência disso, na minha opinião, um trabalho acadêmico que vise a emergência do pensamento não tem sentido algum senão na tentativa de esgotamento da própria vida.
O estratégia não é sobreviver, mas viver.
O desafio é antes de tudo viver ao ponto de ousar pensar.
No caso específico da discussão sobre os métodos científicos, dentro de uma intuição que beba do desejo de anti-ciência, creio que eles precisariam ser esgotados e avariados, vilipendiados ao extremo tanto de sua força quanto de sua fraqueza. O método científico precisaria ser experimentável e não experimental; precisaria ser vivido e não aplicado.
Já no caso dos métodos outros, o desafio é principalmente a escrita, porque é através dela que conseguiremos dar existência a este conjunto de intuições que nos ocorrem enquanto esgotamos a vida com nossa própria carne, tantas vezes perplexa, tantas vezes extasiada, sempre em vias de expressar-se diferentemente. É preciso deixar que ela comunique o que se passa no corpo, ou que tente comunicar; é preciso esquecer as palavras de ordem que nos ensinam como quem fornece pás e picaretas aos operários e falar mais livremente.
Abster-se de operar o método científico em favor de uma estratégia vital, aos olhos dos guardiões da ciência, é um tentativa de leviandade ou descompromisso com o rigor de um trabalho. Como elemento que condiciona uma ação, o método científico cobra seu preço: é preciso bater ponto pra fazer ciência. Há ainda aqueles guardiões arrependidos que fazem crer que não é preciso bater ponto para os maus métodos, mas que é preciso para os bons. Normalmente defendem um método que seja qualitativo ao invés de quantitativo. Na minha opinião, simplesmente fumam sem tragar. Apressam-se em dizer que não há sentido algum em falar do anti-método e da anti-ciência porque sempre há, sim, um método e que ele sempre leva a uma certa concepção de ciência, que o anti-método leva somente à anti-tese, e não é isso que devemos apresentar à época das cerimônias. Para mim, são iguais aos grandes avatares, com sutis variações de temperamento: desejam o exercício científico assegurando o rigor que preside e baliza o surgimento do raciocínio verdadeiro e verificável.
Para mim, a questão da regularidade esperada na ciência reside menos no fato de um método presidir o surgimento do raciocínio verdadeiro e verificável do que no fato de ela ser rotineira e previsível. Os métodos científicos, em sua maioria, não consistem em estratégias de pesquisa, e são poucos os que falam de determinada ética de pesquisa; em geral, tratam de rotinas de trabalho divididas em coleta de dados, catalogação de dados e, finalmente, análise de dados. Os métodos científicos são favoráveis ao trabalho rotineiro do arquivista, e sempre que ele for um bom arquivista, todos poderão voltar aos originais para percorrer novamente um caminho.
É certo que precisamos também de um grau de estatística; como já falei, o problema não é que o método científico seja operado por alguém que o deseje, mas que este método seja condição hegemônica para qualquer um que queira ousar pensar. A estatística, seja ela numérica ou lingüística, isso também é necessário porque é certo que o preço do pão sobe vertiginosamente e que algumas frases são recorrentes demais. É preciso marcar estes processos direta ou criticamente e dar louvores à também nobre função do arquivista.
Ao assumir um estratégia vital, porém, trata-se de viver à moda do cartógrafo e de assumir tanto seu outro rigor quanto todos os seus outros riscos . O trabalho criado como ciência menor oferece um rigor da rotina ética, estética e política : pensar passa a ser extrair criativamente da experiência novos pontos de balizamento para si e para o mundo, e para isso é necessário preencher o cotidiano não de rotinas de uso, mas de sensações, preencher-se de emoções para dar visceralidade à memória, rabiscar mapas de si e do mundo em papéis diversos ou na própria pele, traçar rotas improváveis, persegui-las de forma improvável, fazer figurações das coisas e de seus arranjos, construir maquetes do imaterial, enviar memorandos e cartas diversas, sacar fotografias furtivas, filmar o imprevisto... é preciso gastar a vida, fazê-la digna de ser vivida.

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