22.6.09

Novos manifestos

Novos manifestos. Sobre a escrita, comunição, gosto de exercê-la como a exerce o maldito. Se conseguir neste meu exercício pessoal e íntimo a abolição da ascese científica sisuda a alimentar a economia dos maus hábitos, então sei que poderei angariar para minhas memórias principalmente as atitudes oblíquas e os exercícios prazerosos destes anos de doutoramento, a alegria da convivência e a espessura dos inebriantes encontros; poderei angariar alguma poesia, algumas reflexões e algumas marteladas.

O crítico se colocará com distância, e mesmo alguns genealogistas ou cartógrafos o farão. Já foi dito que os excessos do maldito são criticados até por alguns cúmplices. A gentileza e a cordialidade parecem ter tomado conta da moral do ambiente, e num certo sentido acabam confirmando o pacto contra a crueldade que persiste entre damas e cavalheiros. Dentre as inúmeras gentilezas e cordialidades oferecidas no ambiente, a presença da escrita e sua possibilidade de publicação é como a mais bela flor. A escrita tanto é tomada como o último requisito da ascese científica, servindo de principal operador nas suas principais cerimônias, quanto é tomada como a maior laura de todas, e até os ministérios aplaudem o texto em revista afamada.

Nossa escrita gentil e cordial, ou seja, nossa distância.

A escrita maldita, desinteressada do tédio das cerimônias oficiais e da mesmice das revistas afamadas, é antes um golpe de martelo no disparate, entrada entusiástica no jogo das verdades. O asceta termina sempre numa argumentação inteligível e bem concatenada, a língua selvagem domada na construção de um argumento entre quatro paredes. Já o maldito reencontra-se sempre sobre os abismos de si e do mundo, nos limites de qualquer visibilidade ou enunciação, é equilibrista entre as fronteiras, malabarista dos limites, terrorista, clandestino e hedonista. Ele deambula entre abismos como quem dança solto em um campo minado.

O maldito filosofa em campo aberto: se suas imagens não revelam o foco de lindas paisagens vistas do topo de uma ravina, tampouco revelam os positivos de uma trajetória ascética, é porque revelam quedas e transmutações, deambulações, imagens em movimento. O maldito reencontra-se sobre os abismos e a escrita só lhe interessa enquanto cartografia das quedas, autobiografia do tempo em seus instantes sublimes, cenários vividos na urgência das leis da gravitação. Em sua última página haverá sempre a urgência de uma derradeira palavra poética sobre o que passa nos momentos de um homem em seu último vôo, religando céu e terra no corpo no derradeiro instante de arrebatamento onde mata-se toda a morte. Um corpo em convulsão na esquina de inflexão da história, inteiramente marcado por sua presença, inteiramente arruinado ou doido por ela.

Não haverá escrita possível entre a estética das cerimônias e seus manuais de redação; esta claustrofobia deve ter fim. O maldito rasga o sentido da norma, repele e recusa seus ardis; abusa da primeira pessoa e não tem medo nem das palavras que se repetem, tampouco de sonoridades que confundem. Escreve um texto para ser lido em voz alta entre amigos, um epitáfio fabuloso que investirá de vontade o carnaval de seus funerais. Ele não poupará a expressão, mas evitará os chavões; de quando em vez, fabricará parágrafos de uma só frase e cometerá sua repetição; inventará palavras e lançará mão de subtítulos que ajudam na passagem direta ao ato. E sempre dobrará a surpresa de uma esquina antes de qualquer novo argumento. Ele escreverá sentado na chuva e não explicará seus porquês; acreditará nas onomatopéias e descobrirá as mais humanas, destacando seus gritos e grunhidos urgentes sob o rumor infernal da história. Entregará sua escrita à gravitação, mas terá imprimido suas marcas somente em papel laminado, com claras instruções para que cada página seja lida ao grande sol de meio-dia. Será de sua preferência apagar os rastros enquanto viaja solto no turbilhão do tempo, permanecendo solto das agarras do espaço.

É urgente inventar novos manifestos.

Urgente.

Também interessa ao maldito o exercício psicopatológico de falsificação; este exercício importará mais do que a significância ou a fixação de protagonistas numa grande estória qualquer. A seriedade e a preocupação com as últimas conseqüências da verdade serão motivo de seu escárnio. Além disso, o maldito é dado à fabulação: a fabulação como exercício estratégico dotado de virtude rebelde, quando tanto mais fabulosos forem os instantes que uma vida única pode descrever, tanto mais feroz será seu pensamento crítico. A comédia, a charada e o chiste interessam como arranhões anárquicos na história, assim como as atitudes deliberadas de escárnio ao fazer e contar histórias à tradicional, ao desejar a filosofia e a ciência à tradicional como aqueles que desejam assassinar Henry, ou fotografar Stirner, ou procurar Bey, ou pensar à moda Rodin, ou arquitetar a cirurgia porcina de Abelardo.[i]

O sertão ainda não virou mar e minha cartografia é árida.

De resto, é preciso esquecer todo o espiritismo.

Como disse minha amiga Vera[ii], menos prosa e mais poesia.

E à vera.



[i] Para conhecer Abelardo, seu amor por Heloísa e as conseqüências porcinas impostas pelo Grande Poder, ver: Michel Onfray. “Virtudes” in A Arte de Ter Prazer – Por um materialismo hedonista. op. cit. p.229-233.

[ii] Ver: Vera Schroeder. “Menos prosa e mais poesia” in Roberto Freire & Coletivo Anarquista Brancaleone. O Tesão pela Vida. São Paulo: Francis, 2006. p.252-266.

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