Escuta, Zé Ninguém! Hoje pela manhã, tendo presente que o objetivo do dia era iniciar esta sessão sobre o contexto mais geral da nossa vida coletiva, preparei meu café da manhã e sentei-me a escutar as notícias matinais em um programa diário de uma das rádios de grande projeção local. Estou novamente em Porto Alegre, austral do Brasil, mas isso importa nada ou pouco: mesmo com nossas peculiaridades regionais, e elas certamente existem, o formato do programa é bastante genérico e o caso que pretendo apresentar também, mesmo que genérico não signifique desimportante. O programa local é um caso, mas certamente não é só um caso local.
A pauta era o costumeiro: um jornalista-âncora, de renome local, conversa pelo microfone sobre fatos e dados recentes e atualizados, assim como coordena a participação de alguns correspondentes que agregam informação desde outras partes do Brasil e até do exterior, algumas pequenas entrevistas com convidados especiais, normalmente convidados que representam alguma entidade envolvida ou que sejam homens e mulheres de notório saber e boa projeção no que é tratado. Professores universitários são recorrentes. É daqueles programas que as rádios transmitem logo cedo e que apresentam o que parece ser a ordem do dia, fomentando a cena pública com informações e discussões pertinentes.
Entre notícias sobre o assassinato misterioso do vice-presidente do sindicato médico gaúcho, comparado inclusive a um famoso assassinato de um jornalista desta mesma rádio ocorrido década atrás e ainda hoje sem solução; notícias sobre o desdobramentos da enxurrada que varreu boa parte de Santa Catarina; notícias e entrevistas sobre a condição polêmica da mais cara e controversa universidade privada local, sobre sua inadimplência com os governos e sua má garantia aos funcionários, bem como sobre suas negociações por aumento de filantropia estatal como forma de equacionar o problema; sobre o reitor desta mesma universidade, que está foragido; notícias sobre pautas da Câmara e do Senado federais; enfim, o dado do último boletim de um instituto público de pesquisa que falava do crescimento recorde de cerca de seis vírgula oito ponto percentual que o Brasil apresentou em sua economia no ano corrente de dois mil e oito.
Neste ponto, alguns jornalistas e críticos festejavam principalmente a capacidade de afirmação e recuperação do tecido produtivo nacional perante a atual crise mundial, instalada desde que as falências e quedas de bolsas de valores começaram a aterrorizar os analistas e operadores econômicos, os governantes, os intelectuais e alguns setores da sociedade – principalmente aqueles que ainda mantém poder ou circunstância de investimento financeiro. Mesmo que as coisas não estejam totalmente estáveis perto do final do ano, alguns dizem que tudo está mais calmo, que a sangria foi apaziguada e que o pior já passou. Outros dizem que o pior ainda virá, e que os anos de então também serão marcantes.
Na capa do jornal do dia seguinte, editado pela mesma matriz do programa de rádio e de grande circulação diária, leio as manchetes: metade das câmeras de rua da Capital [gaúcha] está desativada, então o assassinato do vice-presidente do sindicato médico não foi capturado ao vivo pelos serviços de segurança pública; o reestabelecimento do fornecimento de gás natural através da fronteira, fornecimento interrompido desde a enxurrada em Santa Catarina; governador é preso ao tentar vender vaga de Obama ao Senado; um homem que sobreviveu à queda do avião em Bagé, fronteira com a Argentina. Não bastasse, uma chamada sobre “a cara do Orkut”, um show de Nei Lisboa organizado por universitários de três cursos locais, um cineasta centenário ainda em ação e oportunidades que vêm com investimentos. No verso, meia página para a notícia que concorre como a principal da semana contra a do crescimento econômico: o Fenômeno vai jogar no Timão em dois mil e nove.
Logo mais é Roberto Carlos, Papai Noel e as cores da virada.
Dezembro, companheiros.
O ciclo inevitável se completa: no final do ano que vem, estaremos novamente falando dos indicadores econômicos, estaremos novamente falando de manobras e pessoas corruptas, estaremos novamente falando de Obama e seu rastro pela política estadunidense, sobre catástrofes naturais, assassinatos inexplicáveis, futebol, o Fenômeno, a cara do Orkut, oportunidades, pautas. Dois mil e dez será de Copa do Mundo e nestes anos tudo parece melhorar.
Todos seguirão mastigando jornal.
Não tenho a mínima chance.
Em cada época, um conjunto de ego trips e seus resultados: o sistema onde se vive diz respeito à ego trip que se tem. É certo que o capitalismo é algo imperial nos dias de hoje, mas isso é somente porque um grande conjunto das ego trips contemporâneas deseja participar deste sistema, deseja participar de sua criação e usufruir benefícios. É certo que existem muitos que desejam por projeto, outros tantos que desejam por conivência e muitos que desejam por desamparo.
A rebeldia virou novela nas mãos de Sílvio Santos.
Falo da ego trip do rei e o especial de final de ano do Roberto, a ego trip do estadista e a popularidade do operário, a ego trip do empresário e o fascínio pelos crimes do colarinho branco. A ego trip do cientista. A ego trip do intelectual, do formador de opinião e do patrão. A colorida ego trip do playboy e do magal, a ego trip do pit bull, mas também a ego trip da noivinha[i] e a ego trip da maria. A ego trip do amigo do amigo. A ego trip do empreendedor e a ego trip da geração saúde. O cliente sempre tem razão, assim como o pai de família e o pastor. O Grande Poder é todo este conjunto de ego trips transformado em sistema: é o cotidiano ordinário transformado em sociedade.
Entre as alegrias do marketing, através de êxtases e espasmos sofridos com os leves choques telemáticos e cibernéticos dos suportes midiáticos, desliza então nosso corpo pela vida lisa, eterno entre-as-prateleiras de produtos identitários, acoplando desejos à força do sistema, movimentando as agonizantes engrenagens fabris, fortalecendo as redes empresariais, acompanhando os extertores estatais e traficando senhas e cifras sob o guarda-chuva do infoespaço. Na roda viva do capitalismo, os mercados tratam materialmente dos modos de ser e viver, e a vida é somente um cardápio de serviços que podemos fazer, direitos e bônus, assim como utensílios que podemos obter. Alguns economizam ou maximizam as forças do corpo, e nisso prometem tanto uma redenção final quanto um caminho às direitas. Temos também sensações seguras, identidades prêt-a-porter, implantes e desfrutes frugais. Temos paz e guerra televisionadas. Temos alimentação laboratorial e balanceada, academias de musculação e ginástica empresarial; temos planos de saúde que não processam e ainda atendem, seguros privados de casa, carro, aposentadoria, contra terceiros, de morte ou vida. Tudo isso pago nas suaves prestações de uma dívida infinita e material, justamente no modelo kafkaniano d’O Processo.
Para além da vida, procura-se a redenção do corpo na sua conjugação com a eternidade científica, e a angústia existencial agora é a eterna insegurança de perecer. O menino Jackson deve ser congelado. Glória Menezes tem o mesmo rosto há 30 anos. As cirurgias plásticas mostram apenas o mais leve sintoma de uma epidemia generalizada cujas formas de intervenção sobre o tempo da vida vão no caminho que liga a engenharia genética ao congelamento e clonagem de humanos. O poder já se exerce, em determinados pontos, como uma reinvenção pós-humana da concepção[ii].
Tudo isso pra entrar no céu do capitalismo.
Pra ganhar um Fuscão no juízo final.
É no agregado de ego trips capitalistas que está ligada a nossa idéia de sociedade, a sua marola bem sucedida, os seus talheres bem dispostos, suas intervenções cirúrgicas, jaquetas metálicas e estofados sintéticos; todo seu cotidiano entre ciborgues: estranha forma de gostar das pessoas como máquinas da imagem e do dinheiro, engrenagens lubrificadas pelo néctar azedo que é servido pelos atendentes mestiços que outrora traficamos, pela mistura de sangue, suor e coquetéis híbridos. O bom de ego trip é aquele que congrega, aquele cuja viagem também agrega benefícios na grande roda da fortuna: aquele cuja ego trip de rei vira trinta segundos na tela do Faustão, aquele cuja ego trip de estadista permite comemorar uma vitória eleitoral, aquele cuja ego trip de empresário rende uma sapataria ou mais, a ego trip do cientista e a laura dos ministérios, a ego trip do intelectual e o livro publicado, o formador de opinião e o espectro de rádio-freqüência, o patrão e o empregado, o playboy de carro novo e o magal de carro emprestado, o pit bull e seu cachorro, a noivinha e seu marido, a maria e sêo josé, todo empreendedor e seu negócio, a geração saúde e a sobrevida, o cliente sempre tem razão porque compra, o pai de família e o pastor.
E o arroz e o feijão na mesa do sem dentes.
Ainda nem falamos dos outros mil Brasis.
Aquele que não congrega, que não agrega nem traduz benefícios, esse vive da hipótese ou da promessa inclusiva, e baba o chão na porta de trás quando toca o sino da ração. Ambos percebem e apresentam o Grande Poder tanto como a única sociedade possível quanto como a única iniciativa inclusiva. Movimentado cotidianamente por muitos, especialmente por ninguém, acharemos neste poder difuso, neste desejo difuso, a turbina do Grande Poder.
Zé Ninguém: “chamam-te ‘Zé Ninguém’, ‘Homem Comum’ e, ao que dizem, começou a tua era, a ‘Era do Homem Comum’. [...] A tua herança queima-te as mãos. [...] Nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única crítica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És ‘livre’ apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.”[iii] Wilhelm Reich já disse que você preside o Grande Poder, Homem Comum. Há anos.
Wilhelm Reich, clandestino.
Ou também tornar-se um empreendedor bem comportado, e achar sua ego trip, e para isso ajudar no funcionamento da turbina, permitindo valer e continuar a cinética do Grande Poder; ou tornar-se persona non grata, espécie de cidadão destinado a padecer na marginalidade, na indiferença e no obscurantismo, senão na raiva explícita impingida às bordas e linhas de escape do sistema.
Hoje em dia, dada a vigência do pacto, nossas antigas questões acerca da liberdade, pelo menos as que diziam respeito à sua expressão e vivência cotidianas, essas deixam de figurar entre as discussões gerais; acreditamos agora que a liberdade já tenha sido levada o suficiente adiante, pelo menos até o ponto onde não se torna caso de intervenção policial, jurídica ou militar. Os cardápios são complexos e cheios de alternativas. Já pressuposta, somente resgatamos a liberdade em discussão quando do julgamento ou da intervenção nas suas bordas e nos seus limites. Na teleologia do capital as bordas e limites de nossa liberdade parecem tão maleáveis quanto pudermos imaginar, e sua distensão constante é um dos motes favoritos dos vídeo-clipes e slogans que produzimos e acompanhamos no chapante discurso do marketing. Não temos mais cara-de-pau de dizer que somos oprimidos, se bem que ainda nos saibamos suficientemente sugestionados.
Liberdade é escolher, entre os cardápios, a sua própria ego trip.
Acabareis todos por morrer de conforto.
É certo que o Grande Poder é aqui e agora e que atua de forma complexa e nada permissiva. Mas a experiência força-nos constantemente a diferir, a constantemente reinventar, atualizar ou extrapolar os pactos vigentes. Os tentáculos do Grande Poder operam na captura desta vida que transborda os sentidos vigentes em novas matérias de expressão, novas formas de ser e de viver. É preciso voltar a acreditar que somos mais espertos. Afirmar a extertor final da esquerda tradicional não é afirmar o fim da política, tampouco o fim da esquerda. Se permanecerem aqui alguns dos equívocos anteriores, certamente o equívoco de uma certa esquerda necessária permanecerá, e já tive a oportunidade de fazer o elogio do voluntarismo quando da discussão da ação direta como estratégia sem subterfúgios.
As anarquias são um problema de esquerda e, assim como o problema mais geral das esquerdas, é também preciso colocá-lo diferentemente. Já está no senso comum dizer que esquerda e direita não existem mais, coisa que me irrita profundamente porque soa a niilismo ou promiscuidade, e por isso deixarei que os leitores façam a escolha dos termos que melhor apetecerem: se não querem me ouvir afirmando uma discussão de esquerda, que pelo menos aceitem uma certa estratégia canhota ou um grau necessário de potência sinistra.
Quando a pedra no teu sapato, tendo por demais estragado teu caminhar, acabará te levando enfim à revolução dos confortos? Nossa principal luta é contra o submisso-em-nós e não contra quaisquer outras figuras institucionais, ideológicas ou esotéricas.
O Grande Poder é o submisso-em-nós.
[i] Ver: Suely Rolnik. Cartografia Sentimental – Transformações contemporâneas do desejo. op. cit..
[ii] Ver: Paula Sibilia. O Homem Pós-orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2003. & Paula Sibilia. “O corpo obsoleto e as tiranias do upgrade” in Revista Verve #6. São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC/SP. Out/2004. p.199-226.
[iii] Ver: Wilhelm Reich. Escuta, Zé Ninguém! São Paulo: Martins Fontes, 1977. p.21.
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