Modernidades.[i] Demarcar o que seja a modernidade parece algo tanto mais complexo quanto mais amplo e detalhado do que procurar as origens ou a unidade de uma psicologia ou de uma psicologia social. A modernidade, no que muitas vezes parece sua amplitude, ela é como uma grande matriz, um arcabouço cuja constituição guarda e dá forma a um grande (senão épico) e recente (senão presente) período de nosso desenvolvimento intelectual e técnico; diferente de uma psicologia ou de uma psicologia social, a modernidade não é um recorte específico dos saberes, mas um recorte transversal, uma linha de corte que atravessa diferentes campos do saber procurando fornecer-lhes uma aura, uma intenção, e que em certa medida os constitui enquanto domínios separadas; a constituição moderna busca estabelecer os princípios de um estatuto cuja funcionalidade e legitimidade fundaria, alcançaria e balizaria diferentes especificidades. Mas a dificuldade em demarcar uma modernidade tem na sua amplitude somente uma razão aparente: a modernidade não é um pacto propriamente unitário, sofisticado ou detalhado, mesmo que tenha características específicas que vamos logo sondar.
Logo veremos que, antes de falar de uma modernidade, é necessário falar de modernidades. É necessário falar de uma multiplicidade de pactos, e que qualquer pacto propriamente moderno é somente um dentro muitos, mesmo que assuma uma forma relativamente hegemônica e bem distribuída como ao propor o gerenciamento das multiplicidades a partir do desenvolvimento científico. A pretensão de uma modernidade unitária da qual a constituição é organizada e unívoca, com contratos claros e vigentes, tudo isso não reflete seu caráter tantas vezes paradoxal e contraditório.
A modernidade enquanto pacto unitário é muito mais frágil do que normalmente supomos. Sua constituição é muito menos consensual do que normalmente supomos. Acredita-se que já se pensou demais acerca da modernidade, e que todo este pensamento fez sofisticar esta reflexão; mas sua constituição é antes de tudo uma colcha de retalhos, nem tão bem escrita e clara quanto achamos, e que contém contradições entre muitos de seus ardis.
Eis a principal dificuldade em demarcá-la.
Desde que inventaram a primeira das dicotomias até as categorias empregadas na atualidade, vemos surgir um jeito mais ou menos bem distribuído de colocar os problemas, e isso já é algo a considerar. Este jeito de colocar os problemas privilegia critérios de fatiamento e de mútua exclusão. Mesmo que as alegorias da religião estejam cada vez mais suprimidas (ou que só agora parecem voltar nas formas mais contemporâneas de fundamentalismo ou carisma), permanecem entre nós, em larga escala, as tendências de constituir divisões como ciência versus política, sujeito versus objeto, humano versus não-humano, indivíduo versus sociedade, cultura versus natureza, pergunta versus resposta, teoria versus prática, mas também passado versus futuro, perto versus longe, direita versus esquerda, tempo versus espaço, eu versus as coisas. A modernidade científica mantém uma relação estreita com estas divisões, mas não é isto que a define propriamente: o império das dicotomias é antes um fenômeno notado na multiplicidade das modernidades, dentro do que a modernidade científica é somente uma forma de expressão.
Colocando-se em cada par num determinado extremo, os signatários da modernidade certamente operarão a lógica do Ou ... Ou, nunca a do E ... E; interessa-lhes principalmente a divisão e a categorização, o escalonamento, o apontamento de fontes e matérias primárias e secundárias, a serialização. Seus pactos de fatiamento e mútua exclusão supõem sempre o privilégio de uma parte específica: é quando o homem reina sobre a natureza, a razão reina sobre a carne, deus está sobre todas as coisas, todas as coisas são subordinadas à vontade, a natureza transcendente sobreviverá à humanidade, a utopia comunista acabará com a barbárie, o progresso científico justifica a política etc.
Mesmo que opere esta lógica de mútua exclusão como uma de suas características bem compartilhadas, é necessário dizer que a modernidade compõe ambientes não-unitários porque, de diferentes pontos, cada qual dos seus signatários pretende esta distribuição de privilégios para si e a partir de fatias e serializações específicas; cada qual dos signatários da modernidade defende criticamente o seu viés contra toda sorte de ataques e polêmicas dos demais signatários, e os resultados são geralmente excludentes.
O dissenso moderno não é possível sem briga.
Não será à toa que vivemos tantas guerras.
Podemos dizer que a história dos pactos modernos pode ser colocada dentro da história das mútuas exclusões, a história da distribuição de privilégios, de gotas de Verdade, e que a melhor forma de representar seu espaço de realização seria uma sabatina cheia de espertos sábios, espécie de julgamento onde cada qual advoga a seu argumento, seus objetos e aparelhos o status de primário contra toda a agonia do erro inato. Uma tal discussão sempre gerou muitos conflitos, e se a Verdade era um ponto crucial no encaminhamento das discussões entre os modernos, era tanto e muito que estava em jogo: histórias, rotinas, escritas, tendências, projetos e tudo o mais. Na sabatina, o primeiro sábio dirá: temos que fazer progredir a ciência para que possamos fazer progredir as sociedades; o segundo sábio replicará: mas somente o progresso das sociedades poderá angariar o bom uso das invenções científicas; um terceiro: senhor, resta à vontade humana o bom uso das coisas, somos capazes de tudo; o quarto: a natureza cobrará tudo em dobro, a Gaia cairá em fúria orgânica sobre a civilização entorpecida; o quinto: a técnica nos salvará do holocausto biológico; o sexto sábio lembrará as facilidades do paraíso comunista; o sétimo fará protesto em torno da soberania das matemáticas e o último, quase acanhado, ainda perguntará: mas e Deus? Onde está o Senhor? Onde ficará a Providência? Daí em diante, cartadas e cortadas, senão rajadas de método e neutralidade como símbolos e garantias de veracidade ou validade.
Eis o ambiente das modernidades.
Péssimo.
O máximo que se pode ver para além das dicotomias é a serialização, e neste ponto iremos compor escalas circulares ou lineares um pouco mais complexas que terão, na distribuição dos privilégios, tanto maior peso quanto melhor forem as qualificações concêntricas ou em linha. A pergunta bastante recorrente: o que vem antes? O que impera? O que gira em torno de quê? E como organizamos a fila ou gerenciamos o diagrama a partir desta qualificação? Primeiro a família, depois a escola, depois a caserna, o trabalho... eis que disseram[ii].
A modernidade enquanto pacto unitário de idéias e roteiros, ela foi um desejo que nunca se concretizou. Este desejo existiu entre aqueles que quiseram ser modernos, e que para tanto constituíram uma comunidade de interesses cuja índole geral pode ser dita como a do policiamento recíproco, e cujas rotinas principais giram em torno de uma razão instrumental que busca o ato gerente contra todo o grande universo do erro inato. Entre os modernos, a modernidade enquanto pacto unitário foi uma grande e desenfreada busca, seu horizonte sempre ampliado como o coelho que corre atrás da cenoura amarrada em sua testa. Muito foi feito em nome da unidade desta comunidade, mas só o que ela fez foi proliferar diferentes versões entre suas grandes celebridades e suas grandes idéias.
Instaurar grandes polêmicas.
O destacamento de uma modernidade dentro do ambiente mais geral das modernidades é algo que deve ser entendido no contexto da organização das ciências, ou da constituição de uma grande Ciência. Além da dicotomização ou do desejo de Verdade, o que também caracteriza uma certa modernidade é a vigência de determinados privilégios dentro de um espaço propriamente científico, a criação e a gerência de um espaço e de interesses propriamente científicos. Podemos dizer que a modernidade é um movimento cujos signatários são principalmente aqueles que, ao operar estas lógicas binárias, circulares ou lineares no rumo de uma Verdade suficiente, acreditaram que no edifício e nas rotinas científicas haveriam as bases mais sólidas para o bom caminho e o progresso na ordem do mundo, no viver cotidiano.
A modernidade deseja muito a Ciência.
Mas, embora as práticas adjetivadas de científicas tenham ocupado um lugar de destaque em seu funcionamento, e há mesmo uma dicotomia que opera na própria divisão ciência versus senso comum um forte sistema de poderes, as modernidades não ficam restritas a esse desejo e a esse ambiente propriamente científicos. Para além da modernidade científica, as modernidades são compostas por grupos dispersos tentando organizar as coisas dentro de certos sistemas de escalonamento e poder, em grande medida também ligados ao pensamento analítico, à razão instrumental e às práticas gestoras, mas também misturando neste bojo toda sorte de espiritismos. As modernidades devem ser entendidas como os esforços dispersos deste tipo de gente, esforços cujo resultado é a mútua exclusão. Se dissemos da não-unidade da psicologia e da psicologia social, chegando à possibilidade das psicologias e psicologias sociais, também deveremos trabalhar em torno de modernidades.
O que nos permitirá taxar diferentes problemas como modernos é menos a participação como signatário em algum dos pactos propriamente científicos, menos seus conteúdos ou questões de ordem científica, mas um conjunto heterogêneo de visões e interesses que guardam entre si um gosto muito particular pelas dualidades, pelas dicotomias, pelas séries, pelo pensamento ancorado em lógicas binárias, em razões analíticas ou instrumentais. Perto ou longe não depende de quem vem ou vai? Aqui ou lá ou acolá não dependem de onde estamos? Uma geometria mais sofisticada certamente resultará em diagramas com outras profundidades que não as permitidas somente em duas dimensões, mas o traço que religará os diversos pontos sempre será o traço de uma regra euclidiana, sempre será um feixe newtoniano gerenciado com mão de ferro.
O que nos permitirá situar as modernidades é esta rede toda que define e articula o cotidiano, e por isso também há muito de modernidades no senso comum. As dualidades, as dicotomias, as lógicas binárias e as razões analíticas e instrumentais, bem como a política e o choque na busca por verdades, esses são os jeitos modernos de colocar um problema e encaminhá-lo; no cotidiano, temos que lidar também com a experiência do disparate, tendo a intuição como um julgamento muito mais imediato e natural, tanto consciente quanto não; as modernidades, entendidas como os pensamentos binários, como as lógicas seriais ou lineares, tudo são como filtros que fizemos a nós mesmos, e que impusemos então ao nosso modo de vida como matriz do olhar.
O racismo é uma distribuição vigente sem fundo científico.
O machismo também é.
Não cabe atualizar a discussão sobre como as formações históricas agenciam não somente a forma de colocar alguns problemas, mas todo o resto que lhe é co-extensivo, todas as cadeias que ativam e concorrem para a colocação de um problema. Cabe, isso sim, lembrar novamente Michel Foucault, e no que seria sua transição ao século deleuziano dos controlatos, deixar no ar a pergunta sobre como e quanto as modernidades em geral e os desejos modernos em cada particular influenciaram na emergência dos dispositivos disciplinares e dos microfascismos, o quanto as lógicas binárias (embrulhadas ou não em papel científico) contribuíram na ascensão e na queda dos impérios da burocracia, e o quanto sobreviverão quando este império começa a ruir sobre as superfícies lisas da atualidade.
Procurando as diferenças abissais e escalonando sujeitos e objetos, indivíduos e sociedades, brancos e pretos e amarelos e vermelhos, homens e mulheres, sadios e doentes, sãos ou loucos... marcando o que se pode saber e fazer acerca destas diferenças a partir de seus carimbos... assim sendo, não terá faltado a índole de religar-nos todos, homens e mulheres ao mundo, ou pelo menos o interesse de deixar-nos viver sem mediações doutas e impositivas? Na falta de um índole de religação, não terá faltado também a possibilidade de bioética, de biopolíticas e de toda sorte de ecologias híbridas? O quanto as categorias influenciaram e influenciam no cotidiano? E quanto o desejo de fazer Ciência contribuiu nisso? É um caminho muito longo... Sobre a modernidade, cabe achar os modernos, apresentar-se e procurar apontar o que achamos de sua constituição. Sobre as modernidades, cabe saber de seus ardis e vigências no cotidiano, e sondar seus efeitos.
O não-moderno intervirá nesta sabatina e dirá: amigos, calma lá! Tudo vale e não me interessa desqualificá-los em nenhum ponto: procuro é ciência E política E sujeito E objeto E humano E não-humano E indivíduo E sociedade E cultura E natureza E pergunta E resposta E passado E futuro E direita E esquerda E teoria E prática; Eu E as coisas todas. Procuro ciências E sensos comuns. Meu olhar percorre ENTRE[iii], busca o caminho do meio, o interstício nas redes, lugar onde até as essências trocam propriedades. Procuro principalmente os pontos de articulação e mediação, limiares de mútua implicação ao invés de mútua exclusão. Procuro a co-extensão. Ouço vozes de todos os lados, e são palavras que portam também outras vozes; ouço linguagens ancestrais num tempo outro da ambiência toda; ouço o rumor das coisas, o frigir das máquinas; ouço todo o equipamento coletivo a movimentar-se. Percorro os caminhos das redes, mas percebo seus pontos de tensão e escape, e como eles movimentam-se em mim à medida em que me movimento neles. Venham cá na janela e vejam isso que vejo agora, um fabuloso e caldaloso rio de híbridos que brotaram sob as fundações dos tribunais de privilégios enquanto ficava-se lá longe em acirrado conclave; vejam que caudaloso e heterogêneo é este rio que corre sem margens contra todas as possibilidades de purificação! Vejam como neste fluxo a sociedade E a natureza E as coisas E os deuses correm juntos, tudo em orquestra! Tomem seu coletes salva-vidas e saiamos desta comunidade absurda no rumo de um mergulho neste mundo, mergulho tão pessoal como um primeiro e inesquecível mergulho, tão singular quanto nossa experiência pode ser contra toda sorte de categorias e privilégios. Prometo que não os levarei até os navios afundados. Sintam: eis a amizade não-moderna contra toda sorte de conclaves modernos.
Tantos os sábios modernos quanto os reles modernos, preocupados com as categorizações e os privilégios primários, com as lógicas binárias e com a subdivisão deste mundo disperso, eles tiveram a cega atenção e não viram a proliferação louca dos híbridos sob todas as tentativas de categorização pura; cegos no rumo de categorias, princípios e razões verdadeiras, foi o real que perderam; ergueram-se pontes intransponíveis que nos separavam do que estava mais próximo, do que estava mais tangível; as modernidades extirparam o corpo do mundo, e dissecaram-nos todos, corpo e mundo. Preocupados com o trabalho de purificação, as modernidades não perceberam um movimento de hibridização que elas mesmas permitiam, as fundações da modernidade deslizavam enquanto seus sábios voltavam-se cegos para o problema dos métodos e privilégios. Negligenciaram a proliferação dos híbridos, das soluções E ... E, da experiência entre as redes, mas suas formas de operação e suas categorias de filiação criaram seus maiores bastardos.
O corpo é um deles.
[i] Esta sessão procura sintetizar uma interpretação pessoal no âmbito das discussões sobre o que seja e como tenha se constituído isso que normalmente chamamos de modernidade. Mesmo que a sessão não concorde plenamente ou ecoe literalmente as discussões que ele propõe, sugerimos a instigante obra de Bruno Latour como referencial inicial de discussão. Ver, especialmente: Bruno Latour. Jamais Fomos Modernos – Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
[ii] Ver: Michel Foucault. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2002 & Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle” in Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.219-226.
[iii] “É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”. Ver: Gilles Deleuze & Félix Guattari. “Rizoma” in Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. p.37.
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